Dossier

CONFISSÕES DO LATIFÚNDIO: TERRA E TRABALHO NO CAMPO BRASILEIRO

LATIFUNDIUM CONFESSIONS: LAND AND WORK IN THE BRAZILIAN COUNTRYSIDE

Amanda Aparecida Marcatti
Universidade Federal de Minas Gerais , Brasil

Estudios Rurales. Publicación del Centro de Estudios de la Argentina Rural

Universidad Nacional de Quilmes, Argentina

ISSN: 2250-4001

Periodicidad: Semestral

vol. 11, núm. Esp.21, 2021

estudiosrurales@unq.edu.ar

Recepción: 23 Junio 2020

Aprobación: 14 Septiembre 2020



Resumen: Este artículo tiene como objetivo analizar la formación histórica de la relación tierra-trabajo-capital, como elementos fundacionales de la cuestión agraria brasileña y la producción y reproducción de las desigualdades sociales. Para eso, volveremos a algunos hechos históricos centrales como: la invasión colonial, la constitución del campesinado como clase social y el proceso de industrialización en Brasil. Entendemos que la reanudación de las categorías de tierra, trabajo y capital son fundamentales para los estudios sobre el campo y el campesinado en América Latina, ya que los significados de acumulación capitalista y expropiación se expresan en sus movimientos pasados ​​/ presentes, siendo actualmente, agroindustria la expresión más compleja de la acumulación capitalista.

Palabras clave: tierra, trabajo, problemática agraria.

Resumo: Este artigo tem como objeto de análise a formação histórica da relação entre terra, trabalho, capital, como elemento fundante da questão agrária brasileira e da produção e reprodução das desigualdades sociais. Retomaremos alguns fatos históricos centrais como a invasão colonial, a constituição do campesinato como classe social e o processo de industrialização no Brasil. Compreendemos que a retomada das categorias terra, trabalho e capital é imprescindível aos estudos sobre o campo e o campesinato na América Latina, uma vez que os sentidos da acumulação e expropriação capitalistas se expressam em seus movimentos passados e presentes. Na atualidade, o agronegócio é a expressão mais complexa da acumulação capitalista.

Palavras-chave: terra, trabalho, questão agrária.

Abstract: This article aims to analyze the historical formation of the land-labor-capital relationship, as founding elements of the Brazilian agrarian question and the production and reproduction of social inequalities. For that, we will return to some central historical facts such as: the colonial invasion, the constitution of the peasantry as a social class and the industrialization process in Brazil. We understand that the resumption of the categories of land, labor and capital are essential to studies on the countryside and the peasantry in Latin America, since the meanings of capitalist accumulation and expropriation are expressed in their past / present movements, being currently, agribusiness the most complex expression of capitalist accumulation.

Keywords: land, work, agrarian issue.

Introdução

Este artigo tem como objeto de análise a formação histórica da relação entre terra, trabalho e capital no campo brasileiro. Acreditamos que esse ponto de partida é imprescindível aos estudos da questão agrária e do campesinato, uma vez que os sentidos da acumulação e expropriação capitalistas, no território agrário, se expressam em seus movimentos passados e presentes sendo, na atualidade, o agronegócio a expressão mais complexa da acumulação capitalista no campo. Ademais, consideramos que discutir as categorias terra, trabalho e capital numa perspectiva histórica é um exercício necessário às lutas que buscam a superação da sociabilidade capitalista no campo e na cidade.

Portanto, destacamos que a expropriação e a acumulação capitalistas encontram originalmente um sentido no modo de produção escravista colonial, que instituiu a economia agroexportadora e a propriedade privada da terra como traços fundantes da questão agrária no Brasil. Ademais, consideramos que o resgate dos processos históricos como a invasão colonial, a constituição do campesinato como classe social e o processo de industrialização da economia sejam necessários à compreensão da produção e reprodução das desigualdades sociais brasileiras.

Invasão colonial e expropriação: a desigualdade persistente

Ao retomarmos a formação histórica e social do Brasil, nossa primeira percepção é a presença de um obscurantismo histórico, em que fatos e momentos parecem não se encaixar. Essa percepção, que a princípio aparece como ignorância individual, é consequência do artifício de dominação coletiva, que historicamente educou as sociedades latino-americanas no desconhecimento da sua memória coletiva e individual. Por isso, o exercício de descolonizar o olhar é tão duro aos povos desse continente, uma vez que o processo de dominação e conformação do que hoje concebemos como América Latina está assentado na prática sistemática de três crimes colonizadores: o genocídio, o etnocídio e o memoricídio.

A combinação destes crimes colonizadores sustentou o processo de dominação e espoliação, alicerçando a formação de uma visão eurocêntrica que permeou, e permeia até os dias atuais, a compreensão histórica do processo de colonização e a atualidade latino-americana. A invasão colonial exterminou milhares de povos originários que resistiram com seus corpos ao saqueio e à exploração dos recursos naturais. A subjugação desses povos ao trabalho forçado e retirada de seus territórios eliminou, ao longo de séculos, a autonomia desses povos sobre a terra, o trabalho e a vida, caracterizando o genocídio por meio do assassinato do corpo físico e da morte prolongada, ocasionada pela eliminação das formas de vida e pelo trabalho escravizado, se constituindo na morte em vida (Báez, 2010).

O etnocídio pode ser entendido como o resultado do roubo econômico que levou à modificação das estruturas mentais dos povos originários. Fato que desencadeou a destruição sistemática dos modos de vida, cultura e cosmovisão originária. O genocídio e o etnocídio são faces do mesmo crime colonizador. Quando ambos se realizam, os povos estão mais suscetíveis a serem dominados e expropriados. Porém, para que o processo de alienação e dominação se complete no passado colonizador e se perpetue no presente, é preciso que a história de resistências não seja contada às gerações futuras, tendo no memoricídio o terceiro crime colonizador (Báez,2010).

O memoricídio representa a eliminação do patrimônio material e imaterial que simbolizam as resistências e as formas de viver anteriores à invasão colonial. As consequências desses três crimes colonizadores, para além da colonização e expropriação material e imaterial, são a deturpação da identidade coletiva entre os povos resistentes e a amputação da capacidade de se reconhecer no outro, a morte da alteridade (Rampinelli, 2013).

Uma das evidências das continuidades e consequências dos crimes colonizadores, sob a égide do capitalismo, é a questão indígena no Brasil. Basta notarmos o lugar que os povos indígenas ocupam na sociedade, como seus modos de vida e territórios são inferiorizados e mercantilizados. Vidas indígenas importam menos, no passado colonizador e no presente capitalista.[1] O modo de ser e de se viver das diferentes etnias indígenas é incompatível com a lógica capitalista que transformou a vida e a natureza em mercadorias. Os povos indígenas estabeleceram, ao longo de séculos, outra relação e lógica de uso com a terra. Para eles, a terra é o sagrado que possibilita a vida e a recriação da própria natureza.

Destacamos que a história econômica, social e cultural do que hoje chamamos de Brasil não se iniciou em 1500. Antes da invasão colonial, diversas e complexas sociedades como maias, incas, astecas, quéchuas, mapuches, guaranis, tupinambás ocupavam o território que hoje conhecemos como América Latina. O que marca esse momento é a colonização, a destruição dos modos originários de produção e reprodução da vida, a transformação do que éramos para o que nos tornaram: povos colonizados (Traspadini, 2018).

Assim, a compreensão dos três crimes colonizadores nos ajuda a desvelar o processo da invasão colonial e da expropriação ocorrida ontem e hoje na América Latina. A colonização do território latino-americano, nos séculos XV e XVI, não foi um impulso natural do descobrimento, uma expedição navegante por territórios desconhecidos. A colonização foi, sobretudo, a necessidade de expansão do capitalismo mercantil europeu. O sentido exato da invasão colonial do território latino-americano é a expropriação e o estabelecimento de rotas comerciais para o nascente capitalismo europeu. Prado Júnior (1997) explicitou o sentido da colonização brasileira, revelando o encontro entre o “velho e o novo”, o passado e sua determinação sobre o presente, as relações de continuidade e complementaridade entre o arcaico e o moderno na formação econômica e social brasileira.

É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução históricas dos trópicos americanos. Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileira. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura, bem como as atividades do país. Virá o branco europeu para especular, realizar um negócio; recrutará a mão de obra que precisa: indígenas ou negros importados. Com tais elementos, articulados numa organização puramente produtora, industrial, se constituirá a colônia brasileira. Este início, cujo caráter se manter-se-á dominante através dos séculos da formação brasileira, gravar-se-á profunda e totalmente nas feições e na vida do país. Particularmente na sua estrutura econômica. (Prado Júnior, 1997, p. 23)

No caso brasileiro, o moderno se alimenta do atrasado, não encontrando um empecilho para o seu desenvolvimento. O sentido dado pela colonização é parte fundante do desenvolvimento e consolidação do capital nesse território, que encontra suas raízes na questão agrária “a partir de uma riqueza originária que serviu ao fim mercantil da acumulação primitiva – baseada no saqueio, na espoliação – e, não menos importante, na implementação interna de novos processos produtivos ancorados na abundância de terra e de trabalho” (Traspadini, 2016, p.119).

O elemento basilar e característico do período colonial (1500-1815) é a constituição da economia agroexportadora que subsidiará, anos mais tarde (nos séculos XVIII e XIX), o nascimento do capitalismo no Brasil, encontrando nas transformações das relações sociais de produção no campo, a gênese da acumulação primitiva de capitais. Marx, ao escrever sobre o “segredo da acumulação primitiva”, na VII parte do Livro I de “O Capital” (Marx, 2013), explicitou que a acumulação primitiva de capitais se dá pela reorganização revolucionária e generalizada das relações de produção existentes, alicerçada na espoliação das terras camponesas, através do cercamento dos campos. Sendo a espoliação e o cercamento, o fundamento da transição do modo de produção feudal para o capitalismo.

O processo que cria a relação capitalista não pode ser se não o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade de condições de realização do seu trabalho, processo que, por um lado, transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção e, por outro, os converte os produtores diretos em trabalhadores assalariados. A assim chamada acumulação primitiva, não é por seguinte, mais do que o processo histórico de separação entre produtor meios de produção. Ela aparece como primitiva porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde (...). A estrutura econômica da sociedade capitalista surgiu da estrutura econômica da sociedade feudal. A dissolução desta última liberou elementos daquela. (Marx, 2013, p.786).

No Brasil, a acumulação originária do capitalismo não teve como base a transição e/ou eliminação do modo feudal de produção. Esse debate marcou a esquerda brasileira entre as décadas de 1960-1970, tendo no pensamento crítico de matriz marxista a constituição de uma análise relevante sobre a questão agrária no país, entendida aqui como “o conjunto de interpretações e análises da realidade agrária, que procura explicar como se organiza a posse, a propriedade, o uso e a utilização das terras na sociedade brasileira” (Stédile & Traspadini, 2011, p.15-16).

Dessa forma, consideramos que a tese do “escravismo colonial” apresentada por Jacob Gorender,[2] explicita de forma complexa e singular a constituição da economia colonial e o nascimento das relações capitalistas de produção no Brasil. O autor apresenta a combinação entre a economia colonial voltada para o comércio externo, denominada de Plantation, a instalação da monocultura de cana-de-açúcar no litoral do Brasil sobre o tripé latifúndio-monocultura-trabalho escravo, e o desenvolvimento de uma agricultura de subsistência para o abastecimento local.

A plantagem escravista distingue-se radicalmente, como se evidencia, da forma de organização típica do feudalismo. Nesta, as pequenas explorações familiares tributárias, possuidoras de meios de produção, autônomas e estáveis, constituem a base dos sistemas. Quando também comparece a exploração senhorial – que tão-somente ocorre em certas fases e circunstâncias –, sua mão de obra é a mesma das explorações familiares, obrigadas ao encargo da corveia. De todo diversa é a organização do trabalho e da produção na plantagem escravista. De nenhuma autonomia dispõem os trabalhadores, o tempo todo a serviço do proprietário deles, trabalhadores, e dos meios de produção (Gorender, 2005, p. 151).

Somente em 1850, com a promulgação da Lei Nº 601, primeira lei de terras do Brasil, se demarcou a instituição jurídico-formal da propriedade privada da terra. Até 1850, a Coroa Portuguesa detinha o monopólio de terra e do território nacional, sendo a propriedade terra colonial. Nesse período, a força de trabalho era majoritariamente escrava, não havendo relações contratuais de assalariamento. Gorender (2005) apresenta essas considerações ao caracterizar apenas uma tendência ao desenvolvimento de relações capitalistas de produção, que ainda eram inexistentes durante a colonização. O modelo agroexportador da colônia tinha o latifúndio como unidade produtiva; a monocultura de produtos agrícolas para exportação e o homem negro como mercadorias e força de trabalho escravizada.

A tese apresentada por Jacob Gorender em 1976 retira do debate sobre a formação econômica brasileira qualquer possibilidade de existência de um modo de produção feudal. A Plantation[3] que em seu primeiro ciclo extraiu o Pau-Brasil, seguido dos ciclos de produção da cana-de-açúcar, da mineração, do algodão, do cacau, do café e por último da borracha, era baseada no latifúndio, na exploração do trabalho e na especialização produtiva voltada à exportação. E, mesmo com a modernização das relações produtivas, não houve mudanças na matriz agrária, que permaneceu excludente e com extrema concentração de riquezas.

Portanto,

destaco: a dependência não se demarca no período colonial. Mas os traços que a dão vida sim. A cooperação antagônica entre colônia-metrópole define a terra e o trabalho vinculado a ela como as sementes orgânicas da germinação enraizadora do capital no continente. O trabalho e a terra, independentemente do nível de cativeiro no qual estejam encerrados no contexto colonial, não conformam, no período do enraizamento, a produção de valor assentada na superexploração da força de trabalho e na produção mercantil majoritária na posse da terra. No momento em que ocorre o giro hegemônico do capital industrial na Europa, século XIX, a nova condição de produção de valor atrelada à técnica e ao trabalho especializado, redefine o sentido da terra e do trabalho na América Latina e a dependência brota das raízes do período colonial, como um novo momento da divisão internacional do trabalho. Como toda raiz, o novo apresentado pela planta/árvore, encarna o velho e reforça nos frutos a continuidade histórica de uma genética que ao longo do desenvolvimento expõe novos mecanismos de exploração e espoliação. (Traspadini, 2016, p. 131)

A economia agroexportadora e a invasão colonial no Brasil tiveram como premissa a exportação de capitais para as metrópoles. Primeiro com a espoliação dos produtos madeireiros e minerais e, posteriormente, com a exportação dos produtos agrícolas, produzidos com trabalho escravo. Essas foram as bases da acumulação primitiva de capitais que possibilitou o nascimento e consolidação do capitalismo no continente Europeu e posteriormente no território latino-americano. Desse modo, observamos que a economia agroexportadora do período colonial e parte do período republicano já sinalizava a dependência econômica como parte do capitalismo no território latino-americano, caracterizado pela subordinação econômica e política da produção agrícola interna via Pacto Colonial.

Questão Agrária e campesinato no Brasil

Com a Plantation, o Brasil logo se subordinou economicamente ao mercado internacional, naquele momento, restrito a sua metrópole. A produção agrícola, não buscava atender às necessidades internas, era voltada para a exportação de capitais para a metrópole. Mas, apesar da Plantation ser a produção agrícola hegemônica, também se desenvolveu no território brasileiro uma produção dos alimentos de base (feijão, milho, mandioca, arroz e a criação de pequenos animais) para suprir as necessidades internas de abastecimento de grande parte dos trabalhadores escravizados e do colonato. Assim, já se apresentava no campo brasileiro uma contradição entre dois tipos de agriculturas. Uma voltada para a produção diversificada de alimentos para o abastecimento interno, com mão de obra escrava e livre, em pequenas porções de terra. A outra agricultura baseada na monocultura para exportação, tendo o latifúndio como unidade produtiva e o trabalho escravo como força motriz. Essa organização da produção agrícola se manteve no campo brasileiro e nos ajuda a compreender a origem da formação social do campesinato, que nasceu em deságio da agricultura capitalista.

A plantagem escravista antecipou a agricultura capitalista moderna e o fez associando o cultivo em grande escala à enxada. Por sua estrutura e pelas leis do seu funcionamento, a plantagem escravista excluía ou emperrava os avanços da tecnificação, ao passo que a agricultura capitalista é obrigada incessantemente a desenvolvê-la em resposta à demanda do mercado, ao encarecimento da terra, da mão de obra etc. Ainda assim, a plantagem escravista colonial teve na escala do cultivo, no emprego de equipes de coletivas sob comando unificado e na divisão do trabalho as vantagens que lhe permitiram sobrepujar a agricultura familiar (Gorender, 2005, p.162-63).

No período colonial, além da exportação da cana-de-açúcar, outro importante comércio era o trabalhador escravizado. O comércio de escravos e o tráfico negreiro permitiram que a Coroa Portuguesa e, em seguida, o Império Brasileiro extraíssem maiores lucros da circulação da mercadoria escravo, somados aos lucros gerados pela produção agrícola. Desse modo, a escravidão obrigou a Coroa Portuguesa manter seu monopólio sobre a terra.

Com o fim da escravidão e a transição para o trabalho livre, o estabelecimento da propriedade privada da terra foi necessário para a constituição de relações capitalistas de produção. Ao suprimir o trabalho escravo, demandou-se maior controle sobre a terra, transformando-a em mercadoria, com o fim de impedir a sua posse pelos trabalhadores negros libertos da escravidão e, consequentemente, a livre organização do trabalho e a apropriação coletiva da produção.

A Plantation entrou em declínio em meados do século XIX com a falência do sistema escravista no Brasil. Com a crise do sistema escravagista e o seu inevitável declínio, o imperador D. Pedro II promulgou em 1850, a Lei nº 601 ou Lei de Terras no Brasil, com o intuito de impossibilitar aos trabalhadores negros libertos da escravidão a posse e/ou a propriedade da terra. Assim, se regulamentou o latifúndio como a base da estrutura fundiária do país. Sob essa ótica, se o trabalho é escravo, a terra pode ser livre; se a força de trabalho for livre, a terra precisa ser cativa (Martins, 1979).

Desse modo, a questão sobre o processo de consolidação das relações capitalistas de produção no Brasil está ligada à passagem da mão de obra escrava para o trabalho livre e o trabalho assalariado, que não ocorreu de forma direta com a promulgação da Lei Áurea em 1888. O Brasil combinou, durante quase 100 anos, formas de trabalho distintas do trabalho assalariado propriamente dito. Principalmente no campo, que recebeu milhares de imigrantes, em sua maioria, camponeses pobres oriundos especialmente da Itália, Alemanha e Espanha, para trabalharem nas lavouras de café, com contratos de trabalho livre, mas não assalariado, garantindo o processo de acumulação capitalista, apesar da abolição do trabalho escravo (Martins, 1979).

Durante esse processo de transição e transformação das relações sociais de produção, se formou o campesinato brasileiro. Sob o movimento contínuo de expropriação e expulsão da terra se forjaram posseiros, quilombolas, caboclos, roceiros, sitiantes, caipiras, colonos, sertanejos, geraizeiros, ribeirinhos, caiçaras, etc. Todos eles, em busca de seu sustento e de suas famílias, encontraram no trabalho com a terra e a natureza possibilidades de sobrevivência e de reprodução social.

Lá [referência ao campesinato russo], o campesinato resistia à expansão do capital porque era um campesinato apegado, ligado à terra. Era como comprova Lênin, um campesinato estamental baseado na propriedade comunitária e tradicional da terra. Lá era um campesinato que não queria sair da terra, que queria permanecer defensivamente alheio ao capitalismo, fora e contra ele, que resistia ao processo de expropriação que poderia desenraizá-lo, libertá-lo da comuna, abrir-lhe os horizontes. Aqui, ao contrário, o campesinato é uma classe, não um estamento. É um campesinato que quer entrar na terra, que, ao ser expulso, com frequência à terra retorna, mesmo que seja terra distante daquela de onde saiu. O nosso campesinato é construído com a expansão capitalista, como produto das contradições dessa expansão. Por isso, todas as ações e lutas camponesas, recebem do capital de imediato, reações de classe: agressões e violências, ou tentativas de aliciamento, de acomodação, de subordinação.

(...)

A crise do sistema escravista institui a apropriação camponesa da terra; uma contradição evidente num momento em que o capital necessitava de força de trabalho, de trabalhadores destituídos de toda propriedade que não fosse unicamente a da sua própria força de trabalho” (Martins, 1981, p. 15-17).

Com o estabelecimento da propriedade privada da terra, do trabalho livre e do trabalho assalariado, se solidificaram as relações capitalistas de produção no Brasil e, contraditoriamente à sua consolidação, a formação do campesinato brasileiro. O movimento desigual e combinado do capitalismo ao matar e expropriar os povos originários do território brasileiro também instituiu seus coveiros. A lógica do trabalho familiar, as produções para a subsistência, a relação simbiótica estabelecida com a natureza e a organização da vida em uma base comunitária são profundamente contraditórias à sociedade das mercadorias. Dessa maneira, não nos parece estranho que as principais lutas anticapitalistas da América Latina têm como protagonistas as comunidades indígenas e camponesas, que se colocam contra a violência da acumulação primitiva permanente.

Industrialização e dependência econômica

O nascimento da indústria e da burguesia no Brasil está vinculado ao rebaixamento do valor da força de trabalho, consequência da exploração do trabalho imigrante somada ao excedente de mão de obra negra livre. Além disso, o processo de integração da economia nacional ao comércio mundial permitiu a acumulação de capitais com a exportação do café e o rompimento definitivo do Pacto Colonial, vigente no país mesmo após a consolidação da República.

Por mais de 100 anos, o café foi a principal atividade econômica no Brasil. Seu declínio se deu com a crise do sistema capitalista em 1930. A depressão econômica do comércio mundial diminuiu drasticamente o preço da saca de café, reduzindo os lucros da economia agroexportadora e o poder político e econômico das oligarquias rurais, deslocando o eixo produtivo da agricultura para a indústria e estabelecendo a base para a virada urbano-industrial da economia nacional em 1930 (Prado Júnior, 1997).

A reorganização da produção capitalista imprimiu uma nova lógica de expansão territorial no Brasil, a lógica urbano-industrial. A primeira virada se deu entre as décadas de 1930 e 1940. Durante a “Era Vargas” (1930-1945), a nascente indústria brasileira ganhou expressão nacional, impulsionada pelos lucros da exportação do café. Com o lucro excedente, extraído do setor agrário-exportador, se estruturou a indústria nacional. Nesse primeiro ciclo da industrialização, foram construídas fábricas de calçados, tecidos e de outros produtos de simples fabricação. Mas, é somente no início dos anos 1950 que se consolida a indústria brasileira com os gêneros derivados do petróleo para o abastecimento do mercado interno e, principalmente, do mercado externo.

O processo de industrialização da economia brasileira adquiriu uma natureza completamente diferente a partir de 1930. Se no passado a indústria ligava-se mais diretamente à produção de bens salários e à de bens de capital destinados à produção, beneficiamento e transporte do café, sendo, portanto, reflexo da demanda internacional, diante desse momento orientou-se endogenamente, buscando efeitos dinamizadores a partir de dentro. No período compreendido entre 1933 e 1955 adentrava-se na fase da industrialização restringida, uma vez que a capacidade de importar permanência reduzida em função das guerras e dos baixos preços das exportações nacionais. (...) evidentemente, a manutenção de tal esforço passava pela produção voltada para a exportação, e o governo se empenhou na criação de mecanismos de manutenção da renda interna que demandavam algum tipo de política de valorização e defesa do preço do café, o que foi empreendido até 1937 (Faleiros, Nakatani & Vargas, 2012, p.221-222).

Durante todo o primeiro ciclo industrial do país, o campo brasileiro permaneceu com sua estrutura produtiva e fundiária baseada no modelo agroexportador do café e na produção familiar camponesa para o consumo interno. Podemos considerar, portanto, que a exportação do café cumpriu o papel de transferência de capitais para o desenvolvimento da indústria e a produção familiar camponesa de “alimentos básicos, alimentando a crescente população urbana e a também na liberação de mão de obra, para a indústria através de um excedente populacional no campo” (Görgen, 2017, p.42).

O salto tecnológico e produtivo vivido com o giro urbano-industrial da produção intensificou as relações capitalistas de produção. A industrialização constituiu um processo de acumulação de capitais distinto do anterior e se internalizou no Brasil como uma tendência hegemônica da produção capitalista.

Contudo, anterior a esse momento, já existiam relações capitalistas de produção no campo e na cidade. A instituição do trabalho livre e a propriedade privada da terra marcaram a transição da economia colonial escravista para uma economia capitalista. Outro fato marcante, que contribuiu para a intensificação da produção capitalista no campo, foi o aumento da demanda por bens agrícolas como forma de custear o rebaixamento da reprodução da força de trabalho urbana, que ocorreu após 1930. O que se deu através da diminuição dos custos com a alimentação, somada ao movimento de redução dos salários pagos aos trabalhadores rurais, abaixo do mínimo necessário a sua reprodução. O aumento da demanda por produtos agrícolas e a renda capitalista da terra recaem sobre o conjunto dos trabalhadores e, em especial, dos trabalhadores do campo, que recebem seus salários abaixo do nível médio necessário a sua reprodução.

Constatamos ainda que, no caso brasileiro, a péssima remuneração dos trabalhadores do campo resultou na expulsão de muitos camponeses e trabalhadores rurais para os centros urbanos. Ao não conseguirem permanecer no campo, esses trabalhadores acabam formando um contingente de reserva de mão de obra nas cidades. Assim, o rebaixamento do custo da força de trabalho no campo contribui para o barateamento dos bens-salários e das matérias-primas empregadas na indústria e, por outro lado, também para o rebaixamento dos salários nas cidades.

Um fato muito mais geral e importante é a compressão do salário do trabalhador agrícola propriamente dito abaixo de seu nível médio normal, de modo que ao trabalhador é subtraída uma parte do salário, a qual constitui um componente do arrendamento e, desse modo, sob a máscara da renda fundiária, aflui para o proprietário fundiário, em vez de para o trabalhador (Marx, 2017, p.590).

Portanto, a renda fundiária alta da terra constitui uma grandeza inversamente proporcional aos salários, que são rebaixados historicamente em relação à renda capitalista da terra, ao preço das terras e ao nível médio dos salários na economia capitalista. Na medida em que cresce a população urbana, se reduz o nível da remuneração dos trabalhadores do campo. Da mesma maneira, na medida em que o aumento da renda capitalista da terra influencia o preço da terra, ocorre também a desvalorização do trabalho agrícola.

a renda (fundiária) elevada se identifica diretamente com o baixo salário. Na medida em que o nível do preço do solo está condicionado por essa circunstância incrementadora da renda, o aumento do valor da terra é idêntico à desvalorização do trabalho, isto é, o alto nível do preço da terra é igual ao baixo nível do preço do trabalho (Marx, 2017, p.591).

O crescimento da produção da riqueza e sua apropriação privada caminham ao lado do desenvolvimento das forças produtivas no sistema capitalista. Estão diretamente vinculados ao movimento de expulsão dos camponeses para as cidades, ao rebaixamento dos salários e as desigualdades sociais vividas no campo e na cidade. Entretanto, contraditoriamente a essa tendência, ocorre o aumento da demanda da produção agrícola e a procura por novas terras produtivas. Em outras palavras, a expansão da fronteira agrícola e a diminuição da quantidade de agricultores é uma tendência inerente ao capitalismo.

É da natureza do modo de produção capitalista que este reduza continuamente a população agrícola em relação à população não agrícola, porquanto na indústria (no sentido mais estrito) o crescimento do capital constante, em relação ao variável, está ligado ao crescimento absoluto – embora ele signifique um decréscimo relativo – do capital variável, ao passo que na agricultura diminui em termos absolutos o capital variável requerido para a exploração de um terreno determinado, ou seja, que tal capital só pode crescer na medida em que novas terras forem cultivadas, o que, por sua vez, pressupõe um crescimento ainda maior da população não agrícola trabalho (Marx, 2017, p.598).

Tendo em vista o exposto, consideramos que entender o movimento de consolidação da produção capitalista no campo significa, em linhas gerais, interpretar as transformações da questão agrária que não se fundam com o capitalismo, mas que se torna, com o desenvolvimento e a consolidação desse modo produtivo, uma problemática com elementos do passado escravista colonial e do capitalismo dependente. Dessa maneira, a questão agrária é a problemática central a ser enfrentada pelo campesinato como classe social, por revelar as transformações sociais de produção que demarcaram diferentes concepções de terra, território, trabalho e vida (Traspadini, 2018).

Considerações Finais

Confissões do latifúndio

Por onde passei,
plantei
a cerca farpada,
plantei a queimada.
Por onde passei,
plantei
a morte matada.
Por onde passei,
matei
a tribo calada,
a roça suada,
a terra esperada…
Por onde passei,
tendo tudo em lei,
eu plantei o nada.

Fuente: Pedro Casaldáliga

A análise da invasão colonial, da economia agroexportadora até a virada urbano-industrial da economia brasileira (1930-40) revela o processo de constituição das relações capitalistas de produção, apontando duas questões centrais para o campesinato e luta agrária no Brasil. A primeira é a constituição de uma lógica da produção no campo com elementos do passado e do presente que representam dois modelos de agricultura distintos. Um baseado no latifúndio, na monocultura e na exportação de matérias-primas e o outro baseado na pequena propriedade familiar da terra, de produção diversificada para atendimento ao mercado interno. A outra questão é a solidificação das relações entre a produção capitalista no campo e a nascente indústria brasileira que, ao se desenvolverem, não romperam com a relação de dependência econômica, mas, se afirmaram como condicionantes do seu processo de desenvolvimento.

A organização da produção sob a economia agroexportadora é a antítese do desenvolvimento econômico interno, pois, sob qualquer ponto que se analise, existe a marca característica da sociedade que vai se formar no Brasil: o retardatário desenvolvimento das forças produtivas que durante os primeiros quatrocentos anos significou, na prática, a ausência de qualquer tipo de política econômica de desenvolvimento nacional. Essas questões possuem profunda conexão com os movimentos seguintes de desenvolvimento da produção capitalista no campo brasileiro, nos paradigmas da Revolução Verde e, posteriormente, do Agronegócio , revelando as continuidades de uma colonialidade persistente em meio a modernidade da agricultura capitalista.

Referencias

Báez, F. (2010). A história da destruição cultural da América Latina: da conquista à globalização. Nova Fronteira.

Carneiro, J. D. (2012, 24 outubro). Carta sobre 'morte coletiva' de índios gera comoção e incerteza. BBC Brasil. Consultado 10/05/20 em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/10/121024_indigenas_carta_coletiva_jc.shtml

Faleiros, R. N., Nakatani, P. & Vargas, N. C. (2012). Histórico e os limites da reforma agrária na contemporaneidade brasileira. Revista Serviço Social e Sociedade, 110, 213-240.

Gorender, J. (2005). A forma plantagem de organização da produção escravista. In J. P. Stédile (Org.). A questão agrária no Brasil: o debate na esquerda 1960-1980 (pp. 147-175). Expressão Popular. (Publicado originalmente em 1976).

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Notas

[1] No ano de 2012, vimos com espanto a circulação da carta dos indígenas da etnia Guarani-Kaiowá que colocavam como possibilidade de resistência à reintegração de posse, determinada pela da Justiça Federal, a “morte coletiva” do grupo de cerca de 170 indígenas que viviam acampados em terras de uma fazenda à beira do rio Hovy, no município de Iguatemi, no Mato Grosso do Sul. A sociedade brasileira não se espantou com a expropriação das terras indígenas e a negação do direito a uma vida digna, mas sim com a possibilidade de um suicídio coletivo como forma de luta. Essa carta escancarou o passado e o presente do genocídio e do etnocídio contra os povos originários no Brasil (Carneiro, 2012).
[2] Apesar do diálogo aqui exposto entre Caio Prado Júnior e Jacob Gorender para a compreensão da formação econômica brasileira, ambos os autores apresentaram concepções distintas sobre este processo. Caio Prado Júnior abordou, nos livros “Formação do Brasil contemporâneo” (1942) e “A revolução brasileira” (1966), a existência desde a colonização de relações capitalistas mercantis, uma vez que a “colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais completa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu” (Prado Júnior, 1997, p. 31).
[3] A concessão de uso das terras, adotada pela Coroa Portuguesa como forma de gestão do território, concedia a posse e o direito à herança das terras brasileiras aos colonizadores que detinham capitais para investir na produção agrícola. O modelo agroexportador organizou sua produção nos sistemas agrícolas com base no tripé latifúndio, mão de obra escrava (principalmente negra) e produção voltada para o mercado externo. Esses sistemas agrícolas foram nomeados de Plantation, sendo a produção da cana o grande produto deste sistema.
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