Ensayos

O mundo natural derrotou o neoliberalismo? O ambiente em meio à pandemia

Roger D. Colacios
Universidade Estadual de Maringá/, Brasil

O mundo natural derrotou o neoliberalismo? O ambiente em meio à pandemia

Estudios Rurales. Publicación del Centro de Estudios de la Argentina Rural, vol. 10, núm. 19, 2020

Universidad Nacional de Quilmes

Recepción: 29 Mayo 2020

Aprobación: 29 Mayo 2020

Resumen: Este ensayo busca generar algunas discusiones sobre la relación entre la pandemia de Covid-19 y la agenda neoliberal. Los debates, promovidos por intelectuales de diferentes cepas, giran en torno a la posibilidad de que el virus, de origen natural, haya derrotado al neoliberalismo. En el texto, señalo que esto no sucedió y que casi nunca sucederá, con una mayor probabilidad de acentuar esta agenda y unirla con el autoritarismo y el extremismo político de naturaleza conservadora.

Palabras clave: Pandemia, Covid-19, Neoliberalismo, Intelectuales, Política.

Resumo: Esse ensaio procura levantar algumas discussões a respeito da relação entre a pandemia da Covid-19 e a agenda neoliberal. Debates, promovidos por intelectuais de diversas estirpes, giram em torno da possibilidade do vírus, de origem natural, ter derrotado o neoliberalismo. Aponto no texto que isto não ocorreu e, dificilmente, ocorrerá, com probabilidade maior de acentuação dessa agenda e sua junção a autoritarismos e extremismos políticos de cunho conservador.

Palavras-chave: Pandemia, Covid-19, Neoliberalismo, Intelectuais, Política.

Abstract: This essay seeks to raise some discussions regarding the relationship between the Covid-19 pandemic and the neoliberal agenda. Debates, promoted by intellectuals of different strains, that revolve around the possibility of the virus, of natural origin, having defeated neoliberalism. I point out in the text that this did not happen and will hardly ever happen, with a greater probability of accentuating this agenda and joining it with authoritarianism and political extremism of a conservative nature.

Keywords: Pandemic, Covid-19, Neoliberalism, Intellectuals, Politics.

O mundo natural derrotou o neoliberalismo? O ambiente em meio à pandemia

Em abril de 2020, tentando me acostumar com as medidas de isolamento social impostas pela prefeitura de Maringá (Paraná - Brasil), cidade em que vivo há alguns anos, comecei a leitura do livro “Só a Terra Permanece” (Earth Abides), do escritor estadunidense George R. Stewart publicado em 1949. A narrativa gira em torno do sobrevivente de uma suposta pandemia que aniquilou em poucas semanas um terço da população mundial e boa parte do restante teria perecido por conta das dificuldades desse novo mundo. Certamente não era uma leitura recomendada para estes tempos, mas me chamou a atenção para muitos aspectos do que vivemos atualmente. De forma geral, na ficção de Stewart houve a tentativa de reconstrução do mundo (ele acaba encontrando outras pessoas), a reprodução dos sistemas de saberes e conhecimentos sociais, a busca pela normalidade. Chama a atenção o fato que temos a tendência em manter as coisas como estão ou como eram. Os procedimentos para evitar o contágio da nossa pandemia real, de Covid-19, enfrentam resistência em várias partes do mundo, pois as pessoas querem que a normalidade de suas vidas permaneça intacta, seja ela prejudicial ou não a sua saúde, ou mesmo, vida. Isso pode ser estendido aos âmbitos maiores das estruturas econômicas e sociais. A tendência é pela inércia, ou melhor, ao retorno ao que estávamos acostumados. É certo, que a mudança súbita do estilo de vida leva a muitas formas de lidar com isso, e muitas interpretações também. Nos últimos meses surgiram diversas teorias do que seria o mundo pós-pandêmico, seja lá quando isso ocorrer. De todas, há uma certa ideia generalizada de que a agenda neoliberal estaria fadada a ter um enterro rápido, sem velório, tal como determinado pelas medidas de profilaxia da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a pandemia atual. Neste ensaio aponto que isso não ocorrerá e procuro justificar minha resposta.

Histórico

Um mundo distraído. Muitos especialistas, filósofos, médicos, cientistas questionaram a capacidade dos governos e tomadores de decisão em planejar com antecedência um conjunto de ações que pudessem amenizar ou evitar o contágio, adoecimento e mortes pela Covid-19. Para esses seria fundamental que os Estados tivessem políticas preventivas para situações como esta, sendo até inconcebível qualquer situação diferente. Acontece que na esfera política havia uma enorme quantidade de distrações nesse momento, tirando o foco de uma iminente pandemia. Janeiro foi um mês no qual acontecimentos de diversas espécies ocorreram, colocando os alertas da OMS e as notícias vindas da China em segundo plano. Dois fatos devem ser destacados: a possibilidade de um confronto bélico entre Estados Unidos da América e Irã, após o país de Trump ter assassinado um oficial de alta patente do exército iraniano, e as retaliações em bases americanas no Oriente Médio (Guimón, 2020). Ao que tudo indicava, ao menos nas notícias vindas das mídias e redes sociais é que uma guerra de grandes proporções seria inevitável. Ainda que pudéssemos relativizar essas informações, conectá-las a rasgos de histeria coletiva, de sensacionalismo e ares de imprensa marrom, de fato, o mundo (ao menos sua porção ocidental), prendeu a respiração e concentrou-se nas jogadas políticas de Trump, reconhecido mundialmente pela inconsistência em suas falas e ações. A receita estava toda completa e tudo indicava que o fósforo tinha sido aceso com a morte do oficial iraniano. Sabemos que não aconteceu nada disso, mas tirou o foco de outros problemas globais por algumas semanas. Além dessa “distração”, outro assunto apareceria com recorrência nos noticiários e redes sociais. A Austrália vivenciava um dos maiores incêndios florestais de sua história. O fogo atingiu milhões de hectares e matou aproximadamente um bilhão de espécies da biodiversidade, além do registro de vidas humanas terem sido perdidas também. Apesar de ter surgido nos meses finais de 2019, o incêndio australiano perdurou por mais seis semanas de 2020 (Parsons et. al. 2020). O assunto diretamente ligado às mudanças climáticas e aos incêndios sazonais na Austrália, que embora possa parecer algo ligado particularmente ao país, não se restringiu a ele. As imagens e fotos da calamidade australiana comoveu grande parte das populações e serviu de exemplo para as queimadas florestais em outras partes do mundo, especialmente na Amazônia.

De fato, parecia que as mudanças climáticas seriam colocadas novamente nos holofotes globais. Um problema antes marginal, que teve início na China, vai escalando os noticiários e redes de saúde por todo o mundo. O então chamado Novo Coronavírus havia ultrapassado as fronteiras chinesas, atingindo o coração do mundo capitalista: os EUA e o seu pulmão, a Europa. É evidente que estes dois acontecimentos não justificam a falta de planejamento mundial em relação a um vírus desconhecido da humanidade, mas a atenção dada a eles e a outros casos restritos ao contexto de cada país tirou o foco do iminente problema. Estes acontecimentos serviram para distrair o público da ascensão do vírus e de sua periculosidade. Também serviram para denotar as falhas do neoliberalismo no que tange aos cuidados com os serviços públicos, da preocupação com a coletividade e o preparo para momentos de necessidade social.

Um mundo doente. Um mês após a China notificar a OMS sobre o Novo Coronavírus (isto ocorreu em 31/12/2019) foi identificado o primeiro caso nos Estados Unidos e quase simultaneamente na Europa, portanto, fora do território de Wuhan, epicentro chinês do vírus. Desse momento em diante temos a configuração de um mundo doente. A existência do vírus na Ásia parecia condicionar o restante do planeta a certa profilaxia, afinal “eles [os chineses] não são nós”, porém o rompimento da barreira sanitária levou a Organização Mundial de Saúde em 30 de janeiro de 2020 a declarar a doença como um caso de Emergência de Saúde Global[1]. Em fevereiro temos a identificação do vírus o SARS-COV 2 e no mês de março a OMS decreta o Covid-19, termo no qual ficou popularizado o vírus, como uma pandemia. A aceleração de casos e de mortes causados pelo vírus é algo impressionante em termos atuais. O mundo deu um salto gigantesco atingindo no final de maio a casa de 5 milhões de infectados, sendo mais de 300 mil mortes. Cifras alarmantes, tendo em vista o dinamismo dos tempos atuais, que trazem à luz as capacidades das ciências, de governos e das sociedades em se organizarem num mundo tecnológico, de comunicações e transportes rápidos para todas as partes, mesmo que o acesso a isso não seja igual para todos. De fato, foram exatamente esses os elementos que auxiliaram na difusão catastrófica da COVID-19 pelo mundo. Vejamos. As tecnologias de informação, tais como celulares, tablets e computadores, em aderência com as redes sociais, levam a divulgação de milhões de notícias por dia, muitas vezes falsas, enganosas, parcialmente corretas, etc. Uma profusão de desinformação que contribuiu para a festa do vírus, ao ser tratado, em muitos casos, como algo inexistente ou mesmo irrelevante do ponto de vista da saúde humana. Quero dizer que: o vírus antes de ser visto como parte protagonista de uma crise sanitária foi difundido como um elemento político, cuja simples existência, força e contágio poderiam ser evitados por máscaras ideológicas. O COVID-19 se refastelou desses canais e foi alcançando os rincões do mundo “civilizado”, antes imune a qualquer praga ou doença oriunda de selvagens, orientais e mesmo comunistas. Muitos governantes do mundo ocidental duvidaram do vírus, acreditaram na condição de progresso do país, nas tecnologias e na racionalidade de seus habitantes. Mas, e aqui entra o fator fundamental, tão acostumados que estavam com as falácias que proferiam cotidianamente para os seus eleitores, esqueceram do fator “neoliberalismo” e o consequente desmonte da estrutura de Estado para conter ameaças vinda do mundo natural. Haveria todo um aparato montado para conter atos terroristas, insurgências internas e externas, mas foram abandonando o mundo natural a sua própria sorte e quem conhece um pouco de ecologia, especialmente ecologia política, sabe que não funcionam bem assim. O mundo natural facilmente procura os reequilíbrios onde há desequilíbrios. A adoção da agenda neoliberal levou do mundo doente ao mundo perdido.

Um mundo perdido. A tragédia do mundo doente deu ensejo a um mundo perdido. O jeito avassalador que o vírus tomou conta das sociedades não teve precedente na história recente da humanidade. Intelectuais de vários espectros foram à frente de seus computadores escrever textos para tentar dar alguma luz a essa nova realidade mundial. Slavo Zizek (2020), Bruno Latour (2020), Boaventura de Sousa Santos (2020), David Harvey (2020), Judith Butler (2020), Byung-Chul Han (2020) e até mesmo Noam Chomsky[2] apresentaram seus pontos de vista, teorias, predições e, de forma geral, demonstraram estar tão surpresos e perdidos como nós. De teorias do naufrágio neoliberal até um suposto espaço para ascensão comunista foram aventadas. Aparentemente, o vírus não traduziria somente uma crise sanitária e política, mas teria uma força revolucionária, de virar o mundo de cabeça para baixo. De fato, nada disso tem se mostrado real. Ora, mas temos uma crise econômica acentuada pelo COVID-19. Sim, não podemos negar isso. Até mesmo o meio ambiente tem mostrado sinais de recuperação, o que também não podemos negar. Os governos de vários países estão retomando medidas do Estado de Bem-Estar Social. De novo, verdade. Mas a origem dessa crise econômica é o vírus? O meio ambiente se recupera de forma sustentável? O suposto Welfare State é mesmo voltado para os necessitados e atingidos pela crise sanitária? O mundo perdido está tão doente, as medidas de isolamento e individualização tão funcionais, que talvez, mas só talvez, não estejamos com disposição para observar a totalidade dos acontecimentos, das ações políticas, dos jogos econômicos, dos meandros da sociedade de classes. De toda forma, para o mundo doente a vacina é algo, pelo menos até agora, quando escrevo essas palavras. É uma possibilidade, ainda que remota. Quanto ao mundo perdido, ao que parece alguns já sabem a direção a seguir e ela não é marchando sobre a lapide do neoliberalismo. Haverá alguma marcha, mas possivelmente sobre corpos humanos. Eu explico.

Considerações

Economistas em pânico. Em grande parte do ano de 2019 a economia esteve, para dizer o mínimo, oscilante. Ainda que as bolsas de valores pelo mundo se mantivessem em saldo positivo, com commodities (especialmente o petróleo) valorizados, havia um clima de recessão evidente. As brigas comercias entre China e EUA, o Brexit no âmbito europeu e outras políticas econômicas desastradas - leia-se América do Sul, leia-se mais… Mercosul - demonstravam que o ano de 2020 não seria de tranquilidade para o mercado. As apostas do FMI e do Banco Mundial era de um certo nível de crescimento, considerado conservador pelos especialistas. Mas esqueceram de combinar com o ano novo, com a natureza e particularmente com o COVID-19. O otimismo dos mercados foi por água abaixo. Se já havia um clima econômico péssimo para 2020, aliado aos problemas de relações internacionais, pelas quebras de acordos multilaterais pelos EUA, as previsões de FMI foram ficando mais pessimistas. De fato, para 2020 as atuais expectativas é que não ocorra nenhum crescimento econômico, para nenhuma nação, nenhuma região, ao contrário, a coluna 2020 nas estatísticas está completamente em vermelho. Embora para 2021 haja um pequeno crescimento mundial de quase 6%, para o Brasil, de onde escrevo, haveria somente 0,6% (Levy, 2020). Mas vejam, isso é uma previsão realizada em fins de abril, muita água vai rolar por baixo dessa ponte. O que fica como lição é que o COVID-19 acentuou uma crise econômica, não tanto pelo vírus em si, mas pelas medidas de isolamento e distanciamento social, fechamento do comércio e indústria e restrição no transporte e serviços em geral e, principalmente, pela falta de planejamento estatal para manter negócios e empregos. O vírus impede a socialização e interrompe os ciclos de produção e consumo. Nada mais nocivo para o mercado e para agenda neoliberal que uma doença antissocial e um Estado desestruturado.

Natureza em recuperação. Junto a esse estardalhaço econômico temos recebido notícias de todo o mundo de que o meio ambiente vem se recuperando. Ou melhor, que não está tão ruim quanto antes. Foram fotografados animais antes considerados quase extintos em vários locais, os índices de poluição hídrica e atmosférica diminuíram e é possível ver imagens da cidade de São Paulo ou Beijing sem a espessa nuvem de fumaça que cobria seus edifícios comerciais (Garcia, 2020). No Mundo Perdido muitas vozes clamaram a vingança da natureza. Uma vingança que pode no mínimo ser considerada pífia, pois ao mesmo tempo em que podemos comemorar essa diminuição da poluição e o retorno de certos não humanos, temos a continuidade do agronegócio. Não se enganem, este não parou devido à doença. Aliás, ganhou novo status ao tornar-se prioritário para a manutenção do abastecimento mundial de alimentos. A Amazônia brasileira está, neste exato momento em que escrevo, novamente em chamas, com um aumento considerável de incêndios em relação aos últimos cinco anos. A população mundial, confinadas em suas casas, tem consumido mais alimentos e, principalmente, energia, videoconferências, lives de cantores famosos, aulas remotas e demais distrações do entretenimento midiático. Talvez estejamos num processo de aprender a socializar de dentro de nossas casas, seja lá qual for a consequência disso. O lixo hospitalar também cresceu de forma considerável. Outro ponto a mencionar é que fomos levados a esquecer o aquecimento global, que ficou fora dos noticiários, mas, certamente, a retratação da atividade industrial, seja de qual monta for e qual período abranger, pouco terá efeito prático na redução do aquecimento - este, recordemos, em marcha para ser inalterável num breve horizonte temporal. Além do que, por fim, toda e qualquer recuperação do meio ambiente, local ou global, neste momento, é passageiro. Passageiro por não ter sido fruto de um processo de mudança consistente e sim de uma contingência viral, de uma crise sanitária. Minha aposta, se me permitem, é nos mercados globais agindo de forma avassaladora nos próximos tempos para recuperar o ano perdido. Isso acarretará o aumento do consumo de combustíveis fósseis, espinha dorsal do sistema, e que com os preços dos barris de petróleo em tão baixo custo, tornam ainda mais viáveis a recuperação rápida e implacável. O quero dizer é que as mudanças não são sustentáveis. O meio ambiente certamente não derrotou, através de um vírus, o neoliberalismo. Só fez transparecer, deixar menos opaco os seus meandros, as suas perversidades, as suas injustiças e desigualdades. Vamos a esta análise.

Análise

As três fatias do bolo neoliberal. Considero que não houve derrota da agenda neoliberal, pois suas dimensões, ainda que avariadas, comidas pelo vírus, ainda estão sólidas o suficiente para manter toda a estrutura. De fato, usar o termo “estrutura” para caracterizar o neoliberalismo é um erro analítico de partida, mas deixarei essa reflexão para mais adiante. São três os aspectos que devemos compreender para verificar a manutenção do bolo neoliberal: política, ideologia e racionalidade. Estes três aspectos estão presentes, em maior ou menor grau de importância, em quase toda literatura acadêmica sobre o assunto, desde Foucault (2008) na década de 1970 até os recentes estudos de Wendy Brown (2019), Christian Laval e Pierre Dardot (2016), em estudos marxistas, etc. Esses apontam para algumas características básicas dessas dimensões, as quais não foram vencidas (ao menos por enquanto) pelo vírus, pelo chamado mundo natural.

Política. Esta é sem dúvida a dimensão que mais transparece nas ações e medidas neoliberais. Em toda cantilena neoliberal, as ações políticas devem ser balizadas pela lógica do mercado, a Catalaxia de Von Mises (1990), com o Estado devendo garantir a liberdade econômica através de políticas e ações específicas para a sociedade. De fato, o neoliberalismo não é uma agenda econômica, mas social. As políticas deveriam agir para restringir qualquer tipo de limitação social imposta para a ordem econômica, ao mesmo tempo, que deveria garantir o contrário, a dimensão econômica livre das amarras de políticas sociais, impor a ordem na sociedade. Esse controle indireto via Estado, de uma dimensão pela outra, é realizado pelo enfraquecimento das políticas sociais, aqui entendidas como trabalhistas, culturais, ambientais, sanitárias e educacionais. “Deixe o mercado agir”, deveria ser o lema explícito da agenda política neoliberal, se posicionando contra toda e qualquer política originada nos chamados Welfare States ou de configuração socialista. No mundo doente e perdido que vivemos durante a crise sanitária do COVID-19, esse desmantelamento dos direitos trabalhistas, o empobrecimento cultural e educacional, a crise na saúde e no meio ambiente não foram abandonados. Mesmo nos países que adotaram medidas “de exceção” para ajudar as classes trabalhadoras em meio à pandemia, o fizeram via mercado ou visando à manutenção do consumo. Vide o caso estadunidense, italiano, francês, brasileiro. As medidas econômicas adotadas, os trilhões de dólares que jorraram dos cofres públicos, visaram manter o funcionamento da produção/consumo e não a garantia das necessidades básicas das pessoas. O dinheiro disponibilizado em sua maior parte foi para as mãos dos empresários, que iriam assim garantir o pagamento dos salários e a compra de matéria-prima industrial; ou foi para o sistema financeiro, na “ajuda” para os bancos, e somente no fim desse processo está o trabalhador. Ou melhor, não há trabalhador na agenda neoliberal, apenas empreendedor de si/consumidores. São políticas de mercado, voltadas para o mercado.

Ideologia. A dimensão ideológica é a mais difundida entre as demais fatias do bolo neoliberal. De igual transparência que a política, a ideologia determina um conjunto de crenças que deveriam nortear os princípios neoliberais: Estado mínimo, liberdade individual, poucos impostos ou mesmo nenhum, privatização (das empresas estatais e da própria vida), ineficiência do bem público e uma série de outros enunciados, senso comum, etc... Ideias sobre o neoliberalismo que aparecem constantemente em qualquer âmbito, mesmo no acadêmico/científico. Isso é reproduzido em ampla escala pelas sociedades atualmente. O COVID-19 teve o efeito de revelar as lacunas da ideologia neoliberal, de colocar em evidência as políticas sociais e sanitárias precárias, as desigualdades econômicas. Mas como vimos isso não foi suficiente para que tais políticas fossem abandonadas. Ao contrário, houve o reforço da ideologia neoliberal, junto à manutenção das políticas econômicas destacadas acima. O reforço econômico para atender às necessidades dos mais pobres e trabalhadores em geral foi confundido com a ideia neoliberal da incompetência estatal e alavancou a valorização das empresas privadas. De modo geral, na ideologia neoliberal tudo que é oriundo do Estado é ruim, mal feito, sem qualidade, enquanto os serviços e produtos provenientes de empresas privadas tem qualidade, bom serviço, etc. Uma falácia sem tamanho, mas que é reproduzida socialmente. Exemplo disso é o Brasil, que atualmente, em fins de maio de 2020, ruma a passadas largas para ser um epicentro global da pandemia. As universidades públicas brasileiras têm atuado na linha de frente, através dos hospitais universitários, nos laboratórios, na assistência social, mas, mesmo assim, está em constante ataque político e social. As verbas e financiamentos são cortados e/ou diminuídos, não havendo uma valorização do seu empenho durante a pandemia. Por outro lado, as empresas privadas, hospitais particulares e laboratórios farmacêuticos são destacados em falas de governantes. De fato, na ideologia neoliberal o negacionismo do bem público é um dos fatores de maior relevância.

Racionalidade. Este é a dimensão mais profunda da agenda Neoliberal. Fatia do bolo que produz a “reprogramação do liberalismo”, tal qual entendida pelos membros da Sociedade de Mont Pelérin, particularmente Hayek (Brown, 2019). Foucault (2008) nos anos 1970 deve ter sido um dos primeiros a analisar esse elemento, chegando ao conceito de Governamentalidade para definir os parâmetros que pautam essa racionalidade. Uma racionalidade que afeta diretamente as relações sociais, ao procurar dissolver a tessitura da sociedade e sua atomização, valorizando o indivíduo - o individualismo para ser mais exato - e produzindo sujeitos descolados do social. A razão neoliberal faz isso atuando na esfera política, econômica e moral, trazendo como bandeira principal o discurso da liberdade (Foucault, 2008; Brown, 2019). Liberdade para o indivíduo, de agir, decidir, produzir, consumir, sem as amarras do coletivo ou do Estado. Mas não percebe a armadilha, pois essa liberdade é cerceada pela economia, por aquilo que os mercados querem e desejam para este indivíduo. Uma racionalidade desse tipo, dominante no mundo contemporâneo, segundo as leituras de Christian Laval e Pierre Dardot (2016), leva invariavelmente a uma espécie de niilismo, de desafio à verdade, agora representado pelo negacionismo das ciências, dos conhecimentos produzidos socialmente e tudo aquilo que pode contradizer a opinião do indivíduo e suas crenças. Em última instância, a agenda neoliberal promove o ataque à democracia, como forma da expressão de anseios coletivos, de igualdade e de esfera pública. Nessa dimensão do neoliberalismo, a economia, ou melhor, o mercado, é fortalecido, pois na desintegração da sociedade e tudo o que vem junto com essa perspectiva de coletivo, deixa o Estado completamente a mercê do Capital, em seus variados formatos. A política é deturpada, torna-se uma ramificação de governança para os mercados e orientada por seus interesses. De fato, como mostra Wendy Brown (2019), os mercados são construídos, viabilizados, amparados e resgatados por instituições políticas, pelo Estado reformatado, que expele os restos do Bem-Estar Social e fortalece o indivíduo, o mesmo que irá negá-lo depois enquanto bem público. Ao cidadão, ou melhor, ao indivíduo, cabe ser livre. Mas livre para que? A agenda neoliberal, o seu projeto político, mascara de forma bastante eficiente as limitações dessa liberdade. Em termos gerais, uma postura política que leva ao reforço das moralidades conservadoras (hétero, branca, patriarcal, cristã), retirando toda possibilidade de o indivíduo “livre” exercer suas opções políticas e sociais. Além disso, torna a busca pelo emprego um jogo de competição e competitividade, ou seja, a luta dos mais aptos ou mais empregáveis e empregabilidade somente conquistada pela flexibilidade de habilidades que este sujeito adquiriu ao longo da vida (Foucault, 2008; Brown, 2019). Quando juntamos esses fatores em meio a uma Pandemia temos a formação de uma situação complexa, na qual o esfacelamento do social, o redirecionamento do Estado, a atomização do sujeito fazem com que as medidas necessárias para contenção da COVID-19 sejam filtradas pelos interesses do mercado. Ora, se num primeiro momento houve a comoção coletiva, a solidariedade e o entendimento público das necessidades do coletivo para romper o avanço do vírus, isso está sendo quebrado progressivamente pelo discurso econômico. Primeiro, com a ajuda que os governos deram às empresas e aos bancos. Algo, como vimos, previsto pela racionalidade neoliberal, na sustentação do funcionamento dos mercados. Em segundo, com o bombardeio incessante de notícias da quebra das bolsas de valores, do desemprego, da recessão, ou seja, na tática do medo, sendo o perigo maior ficar desempregado do que sem saúde ou pior, sem vida. No desamparo do Estado, todo voltado a auxiliar na recuperação da economia, o indivíduo supervalorizado sente que a sua condição, a sua “liberdade” está posta em jogo e passa a acreditar no discurso que melhor lhe convém.

A racionalidade neoliberal é o negacionismo da democracia. Acontece que ao fazer isso abre uma larga avenida para os projetos de autoritarismo e extremismos político-sociais. De fato, não tem como desintegrar o tecido social sem consequência direta na real liberdade do indivíduo. A pandemia além de fazer transparecer os defeitos da agenda neoliberal fez também evidenciar a necessidade que os indivíduos têm do coletivo, do controle político da sociedade, de fazer parte. No entanto, tal evidência é soterrada pela lógica do mercado. O vácuo, como já disse, está aberto para os projetos de extremismo político, autoritarismo. Ao ser deslocado da sociedade, o indivíduo precisa de orientação de como agir fora da normalidade, precisaria de regras de conduta coletiva. Mas essas regras, construídas ao longo de séculos e séculos, nas mais variadas formas de relações sociais, agora esfaceladas pelo neoliberalismo, ganham novos contornos e usos diferentes do ideal. Em lugar de recriar o sentimento de comunidade, de coletividade, acentuam-se os desejos individuais, como afirma o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (2020). O sujeito se vê amparado pelas medidas extremas de isolamento e distanciamento, do chamado lockdown, o que leva ao aumento da desintegração social, em vez de contribuir para costurar esse tecido já desgastado.

Parecer

O que fazer? Concordo com Jacques Rancièrè (2020) ao questionar num texto sobre a pandemia: “Quem fará tudo o que for preciso para mudar tudo?”. Porém, não acho que seja somente uma questão de esforço individual. Pelo contrário. Florestan Fernandes (1979; 2019), sociólogo brasileiro, afirma que qualquer mudança social é um processo lento e penoso, de construção coletiva e dado por pré-condições objetivas e subjetivas. Basta ver os processos históricos revolucionários do século XX, ou mesmo do XVIII, em que havia um movimento sendo organizado por detrás dessas insurreições, ou seja, algo estava em gestação, algo concreto. Além do mais, toda transformação social, ainda seguindo o pensamento de Florestan, é político, tem nesse aspecto seu cerne e desenvolvimento. O embrião revolucionário poderia já estar entre nós através da crise ambiental promovida pelo Aquecimento Global, tema candente há muitos anos. Mas, efetivamente, no meio da pandemia, as mudanças climáticas foram esquecidas. O filósofo francês Bruno Latour (2020) analisando o momento atual percebe um espaço para uma “revolução”, com a diminuição da atividade econômica, a transparência das falhas do projeto neoliberal, a crise sanitária e social instalada, daria ensejo a uma modificação no panorama político. Pois bem, com este horizonte em mãos, Latour questiona quais as possibilidades de “revolução” e chega à conclusão de que os revolucionários do momento, os quais estão na dianteira das possíveis transformações, não estão no campo progressista. Pelo contrário, dadas às condições sociais e políticas em que vivemos durante a pandemia, o campo conservador está na liderança de qualquer processo revolucionário possível. Ou seria de uma reforma possível? Latour não responde quais as características dessa possível revolução do campo conservador, ele está mais preocupado com a configuração da situação e não em suas possibilidades. Podemos, no entanto, captar algumas nuances dessa possível mudança, através da análise feita por Byung-Chul Ha. Para o filósofo sul-coreano, os encaminhamentos e as características possíveis dessa mudança no sistema capitalista, especialmente, quando observadas as ações chinesas de contenção do vírus e mesmo de controle social, chamaria a atenção para a extrema capacidade do Estado chinês em manter os cidadãos sob a vigilância severa. A dificuldade de muitos países ocidentais em realizar com eficácia o isolamento social denotou que seus aparatos estatais estariam desatualizados, ou melhor, incapacitados em promover o controle efetivo de seus habitantes. Essa situação é um fator de preocupação para Han, que destaca a enorme capacidade apresentada pelo Estado Chinês na contenção do vírus mediante o controle total da população. O temor de Han é que este tipo de estado policialesco seja mais um item de exportação chinês. De fato, a medida de isolamento social e distanciamento, segundo Han, contribuem para essa ascensão do Estado policialesco, pois aumentou a individualização e o individualismo. Ou seja, dentro da perspectiva aqui apresentada, é fortalecida a racionalidade neoliberal, ao mesmo tempo em que se abre espaço para o crescimento do autoritarismo e extremismo político. De todo modo, não é possível prever os rumos atuais, a situação muda a todo o momento com o relaxamento e endurecimento das medidas sanitárias, com notícias da possibilidade de uma vacina para a Covid-19, decisões políticas enviesadas ideologicamente (conforme tem acontecido no Brasil e EUA), situações particulares para cada país e região, etc. Ainda estamos passando por um “mundo doente e perdido”. Acredito que muita coisa ainda vai acontecer até ser possível decretar o fim da pandemia. O que está claro, independentemente de qualquer rumo tomado desde então, é que o campo político progressista, especificamente preocupado com o bem público, com o meio social e o desenvolvimento humano, tome as rédeas da situação, que assuma o protagonismo, que atinja as massas excluídas e proponha um projeto de futuro que seja ao menos de manutenção da vida humana e não-humana, que não seja uma necropolítica (Mbembe, 2016). Acredito que devemos parar de atribuir a entidades externas a possibilidade de revolução, seja Deus, vírus, meteoro, alienígenas, e voltar a discutir nossas responsabilidades de destruição dos monstros criados pela própria humanidade.

Bibliografia

Brown, W. (2019). Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocratica no ocidente. São Paulo, Brasil: Editora Filósofica Politéia.

Butler, J. (2020). El Capitalismo tiene sus límites. “En” G. Agamben et. al. Sopa de Wuhan, (pp. 59-66). Buenos Aires, Argentina: ASPO.

Davis, M. (2020). A crise do coronavírus é um monstro alimentado pelo capitalismo. “En” M. Davis et al (Org), Coronavírus e a luta de classes (pp. 05-12). Brasil: Editora Terra sem Amos.

Fernandes, F. (1979). Mudanças sociais no Brasil: aspectos do desenvolvimento da sociedade brasileira. 3a ed. São Paulo: Difel.

Fernandes, F. (2019). A formação política e o trabalho do professor. Marília/SP: Lutas Anticapital.

Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes.

Garcia, Janaína (2020. January 01). Meio ambiente e educação podem sofrer com ações “escondidas” por pandemia. Ecoa/UOL, edição online. “Recuperado” em 15 maio, 2020, “desde” https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2020/05/01/de-desmatamento-a-enem-10-questoes-para-prestar-atencao-na-pandemia.htm.

Guimón, Pablo (2020, January 03) . EUA matam o poderoso general iraniano Soleimani em um ataque no aeroporto de Bagdá. El Pais. “Recuperado” em 16 maio, 2020 “desde” https://brasil.elpais.com/brasil/2020/01/03/internacional/1578010671_559662.html

Han, B. (2020). La emergencia viral y el mundo de mañana. “En” G. Agamben et. al. Sopa de Wuhan, (pp. 97-112). Buenos Aires, Argentina: ASPO.

Harvey, D. (2020). Política Anticapitalista em tempos de Covid-19. “En” M. Davis et al (Org), Coronavírus e a luta de classes (pp. 13-24). Brasil: Editora Terra sem Amos.

Latour, B. (2020). Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise. Edições N-1. “Recuperado” em 23 maio, 2020 “desde” https://n-1edicoes.org/008-1.

Laval, C.; Dardot, P. (2016). A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo.

Levy, P. M. (2020). Economia Mundial. Carta de Conjuntura (IPEA), (47), 1-13.

Mbembe, A. (2016). Necropolítica. Arte & Ensaios, (32), 123-151.

Parsons, A. et. al (2020, January 06). Entenda por que os incêndios que atingem a Austrália são tão graves. Folha de S. Paulo, edição online. “Recuperado” em 15 maio, 2020 “desde” https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2020/01/entenda-por-que-os-incendios-na-australia-sao-tao-graves.shtml.

Rancièrè, J. (2020). Uma boa oportunidade. Edições N-1. “Recuperado” em 23 maio, 2020, “desde” https://n-1edicoes.org/039-1.

Santos, B. S. (2020). A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Edições Almedina S.A.

Stewart, G. R. (1983). Só a terra permanece. São Paulo, Edições GRD.

Von Mises, L. (1990). Ação humana. Rio de Janeiro: Instituto Liberal.

Zizek, S. (2020). Um golpe como “Kill Bill” no capitalismo. “En” M. Davis et al (Org), Coronavírus e a luta de classes (pp. 43-47). Brasil: Editora Terra sem Amos.

Notas

[1] Deve-se destacar que isto tenha acontecido somente pela sexta vez na história da OMS. No entanto, a primeira foi em 2009, portanto, em menos de vinte anos entramos por vários momentos nessa classificação pré-pandemia.
[2] Chomsky tem apresentado suas análises através de lives com seus seguidores nas redes sociais.
HTML generado a partir de XML-JATS4R