Dossier
A política do silêncio da reforma agrária nos governos do (PT) no Brasil o “impeachment” de Dilma Roussef (2002- 2016)
La política del silencio sobre la reforma agraria en los gobiernos del PT en Brasil y el impeachment de Dilma Roussef (2002-2016)
The politics of silence on agrarian reform in the PT governments in Brazil and the impeachment of Dilma Roussef (2002-2016)
Estudios Rurales. Publicación del Centro de Estudios de la Argentina Rural
Universidad Nacional de Quilmes, Argentina
ISSN: 2250-4001
Periodicidade: Semestral
vol. 15, núm. 31, 2025
Recepção: 18 Fevereiro 2025
Aprovação: 19 Maio 2025
Resumo:
Descrição de alguns processos concomitantes que conduziram à marginalização da política de reforma agraria nas gestões federais do PT até o Golpe de 2016. O pacto do agronegócio foi privilegiado e houve cada vez menos distribuição de terras aos trabalhadores do campo. Além disso, as políticas públicas focadas para este setor, foram desvinculadas das lutas em torno da questão agraria brasileira. Ao projetar o termo agricultura familiar e silenciar a expressão reforma agrária, fortaleceu-se os atores vinculados à manutenção da concentração de terras.
Palavras-chave: – silenciamento, questão agraria, governos do PT, agronegócio.
Resumen: Descripción de algunos procesos concomitantes que llevaron a la marginación de la política de reforma agraria en los gobiernos federales del PT hasta el Golpe de Estado de 2016. Se priorizó el pacto del agronegocio y se redujo cada vez más la distribución de tierras a los trabajadores rurales. Además, las políticas públicas centradas en este sector estaban desconectadas de las luchas en torno a la cuestión agraria brasileña. Al proyectar el término “agricultura familiar” y silenciar la expresión reforma agraria, se fortalecieron los actores vinculados al mantenimiento de la concentración de la tierra.
Palabras clave: – silenciamiento, cuestión agraria, gobiernos del PT, agronegocio.
Abstract: Description of some concomitant processes that led to the marginalization of agrarian reform policy in the PT federal administrations until the 2016 Coup. The agribusiness pact was prioritized and land distribution to rural workers was increasingly reduced. In addition, public policies focused on this sector were disconnected from the struggles surrounding the Brazilian agrarian issue. By projecting the term "family farming" and silencing the expression agrarian reform, the actors linked to maintaining land concentration were strengthened.
Keywords: – silencing, agrarian question, PT governements, agribusiness.
Introdução
Partido dos Trabalhadores (PT)[2] a partir de 2003, começaram a marginalizar a política voltada para a democratização do acesso a terra para grupos sociais vinculados tanto ao Movimento dos Trabalhadors Rurais Sem Terra (MST) como a sindicatos de trabalhadores rurais, como para povos e comunidades tradicionais, através de um progressivo silenciamento da expressão “reforma agrária” que, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1994 a 2002), havia congregado diversos atores que formavam oposição a seu governo, embalados pela visibilidade conquistada pelas ocupações e mobilizações dos sem-terra que chegaram a aparecer em uma “novela da 8” da TV Globo.[3]
A expressão reforma agrária, no sentido de o Estado destinar terras para os trabalhadores do campo e melhorar o acesso da população a alimentos, surgiu e se estabeleceu no léxico político do Brasil a partir dos anos 40, pois o contexto democrático favoreceu o surgimento de mobilizações camponesas com este objetivo. Neste contexto é que surgem as Ligas Camponesas no Nordeste, o Movimento dos Agricultores Rurais Sem Terra (Master), no Rio Grande do Sul e a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (Ultabs), já que os sindicatos da categoria só foram legalizados a partir do Estatuto do Trabalhador Rural, promulgado em 1963. É importante frisar que a ditadura empresarial-militar se instaurou, bloqueando o processo em que as populações pobres do campo, geralmente “posseiras” ou “agregadas”, depois de séculos enredados em redes de parentelas e domínios clientelísticos, estavam, enfim, assumindo protagonismo político de tipo “moderno” (Vasconcelos, 2020), através de movimentos sociais vinculados a uma miríade de atores progressistas que iam se desenhando no cenário político compostos por setores da Igreja Católica, o Partido Comunista do Brasil (PCB), que era ilegal, e Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Nos anos finais da ditadura, esta bandeira política ressurgiu e originou o surgimento do MST, em 1979, nas lutas de posseiros expulsos de uma Reserva Indígena, no Noroeste do Rio Grande do Sul, que passaram a demandar as terras da Fazenda Sarandi, desapropriadas nos anos 60 pelo então governador Leonel Brizola, do PTB, mas não integralmente distribuídas para os “colonos”, como eram chamados estes camponeses (Lerrer, 2021).
Defendida por grupos sociais que exigem a legitimação da posse e da propriedade da terra para populações pobres do campo, a reforma agrária está inscrita na Constituição Brasileira, mais especificamente no capítulo III: Da política agrícola e fundiária e da reforma agrária, que é parte do Título VII: “Da ordem financeira e econômica”. Como enfatiza artigo de Mauro Almeida (2007), também é reforma agrária o reconhecimento e a homologação dos territórios dos povos indígenas e quilombolas, bem como de diferentes populações de posseiros, hoje chamados de povos e comunidades tradicionais, pois o reconhecimento destas formas geralmente de uso comum da terra, também expressos na Carta Magna de 1988, implicam em retirá-las do mercado e legitimam o modo de vida destas populações rurais, historicamente ameaçadas por projetos de desenvolvimento baseados na intensificação da acumulação capitalista. Nas últimas décadas, o “passaporte” para ter acesso a direitos de cidadania e à terra tem sido as identidades étnicas.
A marginalização das lutas por terra e reforma agrária sob os governos latino americanos da chamada “Maré Rosa” não ocorreu só no Brasil, como demonstra livro organizado por Kay e Vargara-Camus (2018). No entanto, este trabalho busca assinalar alguns elementos específicos do debate agrário brasileiro, marcado pela decisão política de projetar a “agricultura familiar” como a identidade beneficiária das políticas públicas e o fortalecimento político do chamado “agronegócio” durante as primeiras quatro gestões do PT: os 8 anos com Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) e os 6 anos com Dilma Roussef (2010-2016), que foi derrubada por um golpe parlamentar e sucedida por seu vice, Michel Temer, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB)
Contrariando as expectativas, os governos chefiados pelo PT, particularmente a partir de 2007, colaboraram para um relativo silenciamento público [4], uma exílio da expressão reforma agrária dos debates políticos da esquerda, passando a dominar as expressões agroecologia, agricultura familiar e gestão ambiental que não endereçam prioritariamente à questão fundiária em suas consignas, escanteando desses grupos sociais a prerrogativa da ofensiva nesta temática e, por consequência, diminuindo seu peso político e social. Esta marginalização não é apenas responsabilidade dos gestores petistas dos governo federal. Há também uma contribuição dos próprios movimentos sociais que em suas disputas pelo monopólio da representação privilegiaram ou se apossaram das outras bandeiras. Mas é fato que algumas inovações políticas participativas, promovidas pelas gestões do PT, que serão descritas a seguir evidenciam este viés.
Esta reflexão se calca em pesquisas bibliográficas, artigos, teses e dissertações defendidas[5] no Programa da Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, assim como em trabalhos de campo realizados em momentos distintos: em 2003, na pesquisa feita para o livro “Reforma Agrária: os caminhos do impasse”; em 2008, como parte da equipe da pesquisa “Sociedade e Economia do Agronegócio”; em dezembro de 2014, ano da reeleição de Dilma Roussef, no encontro promovido pelo Gabinete da Presidência da República e a Associação Brasileira pela Reforma Agrária (ABRA), denominado “Questão Agrária e o Combate à Desigualdade Social”; em 17 de junho de 2019, na entrevista com Luís Carlos Guedes Pinto[6], ex-secretário executivo do Ministério da Agricultura, entre os anos 2004 e 2006, e ministro da Agricultura entre 2005 e 2006, em Campinas; e em 2025, em trabalho de campo em assentamentos de Goiás.
Por meio destas experiências de pesquisa, foi possível verificar que várias iniciativas políticas implementadas pelos governos petistas, voltadas para as populações pobres do campo, esvaziaram e “silenciaram” seu conteúdo agrário, enquanto os atores mais poderosos dos governos de coalizão do PT contribuíram para a fragmentação dessas lutas, omitindo seus ganhos concretos e revelando a incompreensão da centralidade estrutural da questão agrária na gestão política das contradições sociais do Brasil (Martins, 2003). Como resultado, houve a fragilização da base social destes movimentos sociais, enquanto que a “concertação política do agronegócio” se unificou, fortalecendo-se a ponto de contribuir decisivamente para o impeachmant da presidente Dilma Roussef, em 2016 (Pompeia, 2018).
Este artigo descreve como se apresenta a questão agrária em um país continental como o Brasil, onde a maior parte cultivável de seus 850 milhões de hectares ainda é pública e está concentrada historicamente nas mãos de poucas famílias, geralmente mediante fraude legalizada e a violência, e como eles restauraram seu poder político já durante a primeira gestão de Lula na Presidência da República a partir do “pacto do agronegocio”.A seguir, descreve como algumas arenas de debates abertas durante os governos petistas, bem como a principal política de financiamento da chamada “agricultura familiar”, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) , tiveram omitidos seu aspecto territorial ou seu vínculo com a reforma agrária para, ao final, esta ser suprimida do projeto de desenvolvimento dos governos do PT. Enquanto a política econômica do país passou a privilegiar as exportações de commodities agrícolas, fortalecendo ainda mais as oligarquias rurais vinculadas a interesses comerciais, industriais e financeiros, os governos petistas não criaram nenhum contrapeso significativo em termos de políticas distributivas de terras que beneficiassem o campesinato e, por conseguinte, robustecessem politicamente sua base social, os movimentos sociais do campo, como o MST, e os sindicatos de trabalhadores rurais (STRs), associados a uma bandeira política democratizadora como a reforma agrária. Estas decisões políticas fragilizaram a luta pela democratização do país, favorecendo a emergência dos governos conservadores que passaram a ocupar o poder a partir de 2016 (Moore Jr, 1976).
Agricultura familiar sem reforma agrária
O Brasil é um Estado-nação que tem pouco controle sobre seu território interno. Setores das classes dominantes, amparados pelo discurso do "desenvolvimento", têm se apropriado de grandes extensões de terra em nome de pessoas físicas ou jurídicas, sem limites de tamanho e sem preferência de nacionalidade — com legislações e regulamentações cada vez mais permissivas à propriedade estrangeira — em detrimento das populações, geralmente de origens sociais modestas, que vivem nessas áreas. Esse processo, no caso brasileiro, tem a especificidade de manter uma das maiores concentrações de terras do mundo e, além de suas dramáticas consequências sociais, tem levado à manutenção de uma democracia baseada em um sistema oligárquico de representação (Montero, 2005).
Artigo publicado em 2019, resultado do esforço de uma rede de pesquisadores brasileiros e estrangeiros que processaram e organizaram 18 diferentes bases de dados de terras públicas e privadas no Brasil, mostra que a maior parte do território brasileiro é ocupada por 97 mil imóveis de mais de 15 módulos fiscais, o que representa 21,5% do território. Além disso, pelo menos 176 milhões de hectares de terras públicas se sobrepõem a propriedades privadas (Sparovek et al., 2019).
Apesar do PT ter apoiado historicamente as lutas pela democratização da terra, também através de sua central sindical, a Confederação Única dos Trabalhadores (CUT), suas gestões robusteceram a hegemonia da agricultura intensiva em capital, hoje conhecida pela expressão agronegócio. Para atender sua base social, estes governos desenvolveram políticas públicas voltadas para a agricultura familiar, mas com impacto marginal. Embora o PT contasse com o apoio dos movimentos sociais rurais, ao longo do anos o termo "reforma agrária" foi desaparecendo do debate público se formos comparar com o período do Governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), que enfrentou ferrenha oposição do MST ao longo de seus oito anos de governo[7].
Artigo de Marcos Paulo Campos classifica de “agrorreformismo residual” o sentido das políticas agrárias dos governos do PT, pelo qual “se fortalecem programas governamentais para quem já está na terra e se atende reduzidamente a demanda de acesso à terra e constituição de novos assentamentos rurais” (Campos, 2021, p. 264). O autor coloca a origem desta postura já no primeiro governo Lula, cujo programa já apontava para “conciliação entre as políticas para o agronegócio e para reforma agrária como forma de intervenção governamental no conflito agrário do país”, mesmo que as expectativas, baseadas no histórico petista, indicassem um “agrorreformismo forte”. Lula chegou a declarar na campanha presidencial de 1994, que iria fazer a reforma agrária “com uma canetada”. E na campanha de 2002 afirmou ser ele o único candidato habilitado a realizar uma reforma agrária ampla e tranquila (Albuquerque, 2006, p. 86). Segundo um dos membros da direção nacional do MST na época[8] até meados de 2003, primeiro ano do Governo Lula, a política agrária era discutida no próprio Gabinete da Presidência da República, então chefiado por José Dirceu, derrubado por conta do escândalo do “Mensalão”, em 2005. Contrariando suas promessas, já no seis meses de seu primeiro governo, Lula adotou a perspectiva do então ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, experiente liderança de entidades patronais, para quem “a reforma agrária é importante, mas não é a hora de realizá-la”. Seu sucessor, Luiz Carlos Guedes Pinto, agrônomo que foi presidente de Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), disse que o governo optou por não realizá-la para manter a coalização política que o sustentava. Logo, após os seis meses de governo, o MST deixou de ser recebido no Palácio do Planalto e passou a negociar no Ministério do Desenvolvimento Fundiário (MDA), chefiado por Miguel Rossetto, o que, na prática, escanteou a reforma agrária dos planos daquela administração. Pouco tempo depois, o presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Marcelo Rezende, indicado pelo MST e pela CPT, foi demitido, e o II Plano Nacional de Reforma Agrária, coordenado por um dos fundadores do PT, Plínio de Arruda Sampaio, foi aprovado com metas reduzidas e nunca foi implementado. O “transformismo” do Governo Lula provavelmente deve-se ao personagem vitorioso deste processo, Roberto Rodrigues, que tinha larga experiência nas mais importantes entidades representativas do setor patronal da agricultura e soube colocar Lula “no bolso” (Gramsci, 2005). Antes de chegar ao Ministério da Agricultura foi presidente da Organização das Cooperativas do Brasil (OCB) de 1985 a 1991; secretário-geral da Frente Ampla da Agricultura Brasileira (FAAB) de 1986 a 1988 – que foi organizada para influenciar o processo da Assembleia Constituinte; Secretário da Agricultura do estado de São Paulo (1991–1995); Presidente da tradicional Sociedade Rural Brasileira (SRB) de 1994 a 1996; e fundador da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), onde assumiu a presidência em 1999. A partir da segunda metade da década de 1990, Rodrigues foi figura-chave nos setores então representados pela Abag e se dedicou a disseminar ideias sobre o que mais tarde seria conhecido como "agronegócio". Uma de suas principais plataformas eram as páginas da revista Agroanalysis, vinculada à Fundação Getulio Vargas (Lerrer, 2020), na qual era um colunista regular. Após sua nomeação como ministro, trouxe para seu gabinete e para outros cargos do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) membros que faziam parte de seu núcleo editorial. Logo, o primeiro ministro da Agricultura do governo Lula foi justamente o líder do setor que, nos dez anos anteriores, junto a um grupo de intelectuais reunidos na revista Agroanalysis, defendeu a adoção do que chamaram de conceito de agronegócio para "unificar" o discurso das entidades representativas do patronato rural brasileiro. Em um contexto de aquecimento econômico do setor, o Mapa, liderado por seu porta-voz, Roberto Rodrigues, tornou-se uma espécie de plataforma para disseminar esse conceito como uma palavra oficial e legítima à sociedade. Segundo Pompeia (2018), em sua tese sobre o resultado deste processo, denominada por ele de “concertação política do agronegócio”, a nomeação de Rodrigues aumentou a articulação do que, na época, ainda era conhecida como “Bancada Ruralista”, que reúne representantes ligados aos interesses da grande propriedade fundiária, ao grupo que Rodrigues liderava, até então mais ligado à Abag, que incluia mais empresas do setor.
A Bancada Ruralista trabalhou em estreita colaboração com o ministro, apoiando-o em iniciativas como a retomada do controle da Embrapa, a criação de títulos do agronegócio e a aprovação da Lei de Biossegurança. Além disso, a atuação parlamentar da frente contra a reforma agrária e os movimentos sociais durante o governo Lula estava em consonância com a temática agrária da coalizão. (Pompeia, 2018, p. 268)
Para Guilherme Delgado, o termo "agronegócio" não é um conceito. Ele o define como um "pacto de economia política" entre cadeias agroindustriais, grandes proprietários de terras e o Estado, que impõe cada vez mais uma "estratégia privada e estatal para a busca da renda da terra como principal diretriz para a acumulação de capital para toda a economia". (Delgado, 2012). Ou seja, para esse pacto, é fundamental manter a fronteira agrícola aberta para seus interesses de acumulação, impedindo a regularização fundiária, tanto das populações indígenas e quilombolas, quanto das populações tradicionais que vivem nessas áreas. Além, é claro, de evitar novas unidades de conservação e qualquer tipo de reforma agrária distributiva. Em suma, para o agronegócio “moderno”, é importante manter a terra como um ativo especulativo, não apenas produtivo. Ao controlar vastas porções do território brasileiro, esses supostos proprietários usufruem de diversas formas de rentabilidade financeira derivada da produção ou mera especulação desse ativo, além de disporem de empréstimos bancários. Em entrevista concedida em junho de 2019, o ex-ministro da Agricultura, Luiz Carlos Guedes Pinto[9], que teve uma carreira acadêmica dedicada ao estudo da política agrícola, afirmou que 0,61%, ou menos de 1%, dos produtores rurais são responsáveis por 51% da renda agrícola. Ou seja, cerca de 28 mil pessoas são “quem manda na agricultura brasileira”.
Portanto, na busca pela renda da terra — nem sempre proveniente da produção, mas sempre como um mecanismo financeiro — inúmeros fundos internacionais começaram a se interessar por recurso fundiários como uma forma de investimento. Um exemplo, estudado por Barros Junior (2019), refere-se à atuação de um dos mais antigos fundos de investimento, o canadense Brookfield Asset Management, que atua no Brasil desde 1899 e que criou, a partir de 2008, “o primeiro fundo do grupo para agricultura e terras, destinado exclusivamente ao país, denominado Brookfield Brazil Agriland Fund I (Bbafi)” (Barros Junior, 2019, p. 92). Em seu detalhado material de apresentação para captação de investidores, a Bbafi apresentou como vantagens comparativas para se investir em terras no Brasil, o fato de “ter alta qualidade, preços bem abaixo de outras regiões estratégicas, baixos custos de produção e mão de obra” e, também, uma “baixa densidade populacional” ( Barros Junior, 2019, p. 95).
A importância dessa lógica de acumulação se confirma mesmo em regiões onde a agricultura capitalista é dominante e, em tese, as propriedades produtivas não correm risco de desapropriação para a reforma agrária, como é o caso do município de Luís Eduardo Magalhães, no oeste da Bahia. Lá, o então presidente do Sindicato dos Produtores Rurais, Vanir A. Kolln, afirmou, durante o segundo mandato presidencial de Lula (2006-2010), que o papel de Rodrigues em seu primeiro governo era "impedir a desapropriação de propriedades improdutivas". Outra ação fundamental do então ministro, em parceria com a Bancada Ruralista, foi impedir a atualização dos índices de produtividade usados para avaliar fazendas que poderiam ser desapropriadas para a reforma agrária, ainda baseados na tecnologia agrícola de 1975.
O silenciamento nas políticas
Em seu livro “As formas do silêncio”, de 1995, Eni Orlandi, classifica silencimento como uma ação, pois é o ato consciente de “pôr em silêncio”. No caso dos governos do PT esta ação colocou no lugar da centralidade da expressão “reforma agrária”, bandeira objeto das mobilizações que mais atraíam visibilidade nos anos 90, o termo “agricultura familiar”. Naquela década, este termo foi consagrado com a criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), em junho de 1996, durante o Governo FHC, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).
O Pronaf foi resultado da pressão e da visibilidade conquistada pelas mobilizações de movimentos sociais do campo, mas o lançamento foi uma resposta política do Governo FHC à violência sofrida por sem-terras em suas mobilizaçõs por reforma agrária. No entanto, sua memória não foi enquadrada desta maneira no período seguinte, quando o PT assumiu o poder. Já o governo do PSDB, seu antecessor, contribuiu para o debilitamento do patronato rural brasileiro, ao não retomar os mecanismos de política agrícola que favoreciam esse setor econômico – como o Plano Safra –, mas também, inadvertidamente, colaborou para expor internacionalmente a luta pela terra no país, haja visto o massacre de sem-terras, ocorrido em Corumbiara, na Rondônia, por policiais militares, em agosto de 1995, que deixou 11 trabalhadores rurais mortos, inclusive uma menina de 7 anos. Mas o que mais alcançou repercussão mundial foi o massacre de Eldorado do Carajás[10], no Pará, que deixou 19 sem-terras mortos, muitos dos quais executados a queima-roupa, por policiais militares em abril de 1996, dois meses antes do lançamento do Pronaf. Para se ter uma ideia do impacto deste evento, um ano depois, em 1997, quando o MST finalizava uma Marcha Nacional, reunindo 100 mil pessoas em Brasília, para rememorar um ano do violento episódio, uma pesquisa do Ibope, encomendada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), encontrou dados surpreendentes: 94% das pessoas concordavam que o MST deveria lutar pela reforma agrária, e 88% concordavam que o governo deveria confiscar todas as terras improdutivas e distribuí-las aos sem-terra. Além disso, 77% dos entrevistados consideram as invasões de terras "um importante instrumento de luta, desde que não haja violência ou morte".
Tanto o Pronaf, criado em junho de 1996, como o Programa Nacional da Educação na Reforma Agrária (Pronera), criado em 1998, são respostas à esta popularidade da reforma agrária naquele contexto. Este último programa abriu a possibilidade de que a base do MST e de outros movimentos sociais do campo tivessem acesso à instrução formal, do ensino fundamental ao superior ainda durante o Governo FHC. Com a entrada do Governo Lula, houve ampliação, maior dotação financeira e estrutura administrativa para o programa operado pelo Incra em parceria com universidades públicas. A partir do Governo Temer, o Pronera foi desestruturado e teve seu orçamento progressivamente reduzido.
As administrações petistas, composta por intelectuais, muitos dos quais oriundos de organizações não-governamentais, movimentos sociais e do próprio PT tinham vínculos construídos com esta base social diversificada dos povos do campo e, portanto, ao longo dos 13 anos de governo interrupto da legenda, criaram todo um marco de políticas públicas dirigidas a eles, mas excluindo a ênfase na reforma agrária. Estes governos estruturaram estas ações através do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), também criado pelo governo de Fernando Henrique, após o massacre de Eldorado do Carajás, mas como nome de Ministério Extraordinário de Política Fundiária.
Assim como no Governo FHC, as políticas criadas do MDA foram desenvolvidas em torno da identidade neutra da “agricultura familiar”, sem, portanto, estarem associadas à política agrária. Mesmo assim, várias das políticas desenvolvidas pelo MDA, com ênfase em crédito e mercados institucionais foram asfixiadas durante os governos Temer e Bolsonaro.
Uma das hipóteses deste artigo é que isto pode ser decorrente da decisão política de omitir o vínculo destas políticas com a reforma agraria, bandeira então ainda popular no inicio dos anos 2000. O caso das representações criadas sobre o Pronaf, como sua história oficial evidenciam isto. Lançado dois meses depois do massacre no Pará, o Pronaf marcou o reconhecimento político e institucional do Estado brasileiro da categoría agricultura familiar. Alguns autores académicos influentes neste campo de pesquisa, como Sauer (2008),Grisa e Schneider (2015), afirmam que a criação do Programa ocorreu em 1995, informação presente também na hagiografía do Pronaf, escrita por Valter Bianchini, “Vinte anos do Pronaf 1995-2015) – Avanços e desafíos”, publicada pelo MDA. Ainda que Bianchini mencione que o decreto do Pronaf é de junho de 1996, termina chamando por este nome o que era conhecido como Provap: os recursos liberados para a colheita de 1995-1996, que permitiram operações de crédito que atenderam pequenos agricultores integrados à cadeia do tabaco da região Sul (Bianchini, 2005, p.26). Mas então não era um programa estrutuado. Era apenas uma resolução do Banco Central de agosto de 1995, que abriu uma linha de crédito para pequena produção agrícola (Bianchini, 2005, p.25).
Evidentemente que não havia apenas lutas pela reforma agraria na época. Na realidade, havia se construído uma unidade entre os movimentos sociais do campo, como a Confederação Nacional do Trabalhadores na Agricultura (Contag), o então Departamento Rural da Confederação Única dos Trabalhadores (DNTR/CUT) e o MST que realizaram uma mobilização conjunta o chamado “Grito da Terra” em 1994 e 1995. Estes grupos exigiam “mais apoio e proteção estatal para os pequenos agricultores familiares”, impulsionados por um estudo da Organização das Nações Unidas para a Alimentação (FAO) e o Incra, lançado em 1994, que definiu com maior precisão o que seria a “agricultura familiar brasileira” e mostrou sua “importancia socio-econômica”
De fato, para alguns autores o Provap, de 1994, não era Pronaf:
Neste contexto, no ano de 1994, como resposta às pressões do movimiento sindical e das agências internacionais, o governo Itamar Franco (1992-1994), lançou o Programa de Valorização da Pequena Produção Rural (Provap). Dois anos mais tarde, em 1996, durante o primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (1996-1998), o Provap foi totalmente reformulado e substituído pelo Progama Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). (Aquino y Schneider, 2015, p. 56)
Bianchini até cita os "Gritos da Terra Brasill”, de 1994 e 1995[11], como um antecedente da criação do Pronaf, mas atribui a autoria das mobilizações “às organizações da agricultura familiar”, incluido entre elas o MST, mas excluindo sua bandeira histórica, que também era pauta da Contag: a reforma agrária. É importante destacar que o Pronaf incorporou o Procera (Programa Especial de Crédito para a Reforma Agraria), que representava a linha de crédito especial dirigida para a estruturação dos assentamentos rurais que passou a ser também demandada pelos “agricultores familiares”. Além de ser uma bandeira histórica do movimento sindical brasileiro, a reforma agrária é uma política pública que viabiliza não só que as populações pobres do campo se convertam em agricultores familiares, mas também torna possível a reprodução social daqueles que já o são, dado o peculiar e altamente valorizado mercado de terras do Brasil (Delgado, 2012).
Este “enquadramento de memória” (Pollack, 1989) sobre a criação do Pronaf é produto de uma memória compartilhada entre o mundo acadêmico e intelectuais que atuavam no governo federal do PT. Não é objeto deste artigo fazer a genealogia deste processo, mas é fato que os artigos citados, assim como a história oficial do Pronaf não fazem qualquer menção à luta pela terra e pela reforma agrária, e sequer ao massacre de Eldorado do Carajás, que certamente influenciavam o ambiente político naquele período.
Concomitante a este silenciamento coletivo em torno do contexto político que favoreceu o lançamento do Pronaf, trabalhos académicos recentes também trouxeram evidências desta política de silencio dentro dos governos petistas e da CUT, braço sindical do PT. Em que pese não terem este objetivo central, estas pesquisas acabaram fornecendo indícios para essa conclusão. A tese de Romulo Castro (2016), sobre a ação e o saber político da CUT nos governo Lula (2003-2010) e sua “suposta traição” à reforma agrária traz inúmrtod dados, entre eles o resultado das reuniões dos Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) que contou com uma participação desta central sindical em 90% das reuniões. Criado em 2003, primeiro ano do Governo Lula, o chamado “Conselhão” tinha por objetivo criar um espaço de diálogo entre o governo federal e a sociedade civil para assessorar o presidente da República na formulação de políticas públicas e diretrizes gerais do governo, reunindo lideranças sindicais, grandes empresários, organizações da sociedade civil e personalidades do mundo acadêmico, jurídico e artístico. O trabalho de Castro demonstra que a CUT, antes aliada de primeira hora do MST, ao longo destes anos, foi abraçando a subordinação e secundarização da reforma agrária como política de desenvolvimento, em favor de um “pragmatismo sindical” que visou fortalecer “espaços de concertação” como o CDES, onde houve um “esvaziamento dos conflitos de classe e a construção de uma ideologia nacionalista e industrialista de desenvolvimento” (Castro, 2016, p.263). Por meio da análise que o autor faz das atas de suas reuniões, é possível ver que o termo “reforma agrária” só esteve presente em 12 das 39 atas e documentos do CDES, analisados por Castro, acabando por ser suprimido no documento “Agenda para um Novo Ciclo de Desenvolvimento (ANC)”, de 2010, embora estivesse no primeiro formulado pelo conselho de 2004: “Agenda para o Desenvolvimento Nacional” (Castro, 2016, p.311).
A dissertação de Ana Paula Donato Aquino, que tem por objetivo principal analisar a relação do Fundo Amazônia (2018) com o financiamento da implementação da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), traz um histórico da consolidação das organizações, constituídas e dirigidas por indígenas, que tiveram um crescimento exponencial a partir da década de 90. Na descrição deste processo de consolidação organizativa, Aquino aponta que, para os indígenas, sempre foi claro “que não se pode fazer gestão ambiental e territorial sem território” (Aquino, 2018, p.39), mas o trabalho citado por ela, de Ivan Gomes Doro Filho (2015), que estudou a construção do PNGATI, com enfoque na intensa participação indígena neste processo, conclui que, embora a garantia do território fosse a demanda central de suas organizações, suas propostas sofreram um “processo de despolitização”, sobrando apenas as palavras de conteúdo político mais fraco em sua redação final, como as vinculadas à conservação dos recursos naturais:
a principal conclusão do trabalho aponta para o fato de que, através da codificação do texto do decreto, foi possível à administração pública abandonar a prioridade de uma política voltada à dimensão da gestão territorial, e à geração de respostas administrativas para as disputas e conflitos locais (ou regionais) que colocam em risco os direitos territoriais dos povos indígenas no Brasil. (Aquino, 2019, p.40)
A mesma conclusão pode ser depreendida da dissertação de Pedro G. Saturnino Braga (2020) que aborda a construção da identidade “povos e comunidades tradicionais” e sua oficialização em uma Comissão, durante o primeiro Governo Lula, 2004/ 2005, “espaço que auxiliou no aumento de força política desses povos e os deu maior evidência” (Braga, 2020, p. 105), mas que, no entanto, além de sofrer falta de verbas, não tocou de fato na questão fundiária, tema que era “prioritário para os povos e comunidades tradicionais”, apesar de ter sido “discutida diversas vezes, mas praticamente sem nenhum avanço”, segundo levantamento feito pelo autor em cima das atas e relatos da comissão (Braga, 2020, p.106).
Embora os governos do PT fossem historicamente comprometidos em fomentar a participação da sociedade civil, criando espaço e oportunidade para isso, evidencia-se uma política de silêncio por trás dessa conduta mesmo em relação aos sujeitos etnicizados que demandavam esta política como os quilombolas e povos indígenas. A própria emergência da identidade “tradicional” destes povos é resultado do contato muitas vezes traumático e espoliador, com a intensificação e expansão do capitalismo no território brasileiro, sobretudo a partir da ditadura empresarial-militar que segue se reproduzindo em forma de expulsão ou compra, a preços irrisórios, das posses destes integrantes da sociedade brasileira, até então desprovidos de direitos e de apoio estatal se quisessem manter e reproduzir seu modo de vida.
Embora não suficiente, uma das explicações políticas para isso é que, durante todas as primeiras gestões petistas, o Ministério do Desenvolvimento Fundiário esteve na mão de uma corrente minoritária do PT, a Democracia Socialista, que nunca teve grande peso político dentro do próprio partido e que, portanto, recebeu um ministério considerado periférico pelo centro de poder, onde pode inserir seus quadros ao longo de várias gestões e, provavelmente, diminuir as tensões das disputas internas dentro do partido. O caráter marginalizado do MDA era evidente não só pelo orçamento reduzido, mas também pelo fato de que a maior parte do seu corpo técnico era formada por consultores e não por servidores de carreira, como é próprio da maioria dos ministérios do governo federal. Apesar deste fato, sua existência, mesmo que modesta, incomodava os grupos políticos dominantes do país, a ponto de que uma das primeiras medidas de Michel Temer, ao assumir a presidência em 2016, foi justamente extingui-lo.
O “Terra Legal” e as políticas de privatização da terra
Um dirigente do MST, Juraci Portes, em palestra em um programa de pós-graduação, realizada em 2004, afirmou que, logo após a eleição de Lula, o “Movimento” não precisava se dar ao trabalho de chamar pessoas para formarem acampamentos. As famílias afluíam voluntariamente, com expectativa de que a terra sairia rápido. De fato, até 2006, houve acampamentos que, em menos de dois anos, conquistaram terra, como foi o caso do “Francisco Julião”, no Estado do Rio de Janeiro (Bastos, 2015). No entanto, a partir de 2007, segundo mandato de Lula, a criação de assentamentos rurais começou a decrescer drasticamente. De acordo com dados recolhidos e armazenados pelo Datalua, em 2005, foram criados 876 assentamentos, maior volume desde que estes dados começaram a ser levantados em 1985. Já em 2006, um pouco menos: 718 assentamentos. Já em 2007, primeiro ano do governo em que o PT fez aliança com o PMDB, caiu para praticamente a metade: só foram realizados 389 projetos de assentamento. Foi também durante os governos de Lula que o instrumento da desapropriação para interesse social passou a ser substituído por compra, medida antieconômica para o Estado brasileiro, seriamente agravada pelo aumento exponencial do preço da terra pela valorização das commodities, sobretudo a soja. A partir do segundo mandato de Lula, a criação de assentamentos só diminuiu, alcançando o patamar mais baixo no Governo de Dilma Roussef, iniciado em 2011, que só criou 81 projetos de assentamentos, e teve como ministra da Agricultura, em sua segunda gestão, uma liderança do “agronegócio”: a senadora Katia Abreu, que também era presidente da poderosa organização patronal Confederação Nacional da Agricultura (CNA)
A diminuição da criação de assentamentos e a demora para a criação e mesmo a oficialização de trabalhadores acampadas em lotes de terra desapropriada se aprofundou desde então. A “espiral de assentamentos”, conceituada por Loera (2006), é sim uma dinâmica que incentivava os movimentos sociais a aumentar sua base de militantes e a criar novos acampamentos, através das redes de parentelas e vizinhança dos recém-assentados, contextos também incentivados pela visibilidade pública da luta por terra e pela reforma agrária. O público da reforma agrária é constituído por pessoas que geralmente vivem de ‘biscates’ e trabalhos temporários, portanto a existência de empregos na construção civil e mesmo o Bolsa Família não significa o abandono do projeto de “ter um lote” para si e para a família, se a terra “sai” com relativa rapidez. No entanto, como os conflitos agrários passaram a disputar espaço com a “agricultura familiar”, tornando-se cada vez menos visíveis no espaço público, em relação ao final da década de 90, perderam seu caráter de urgência para receber atenção por parte dos governos. Não se pode afirmar que a demanda de terra tenha diminuído quando se desenha uma realidade em que é cada vez mais difícil conseguir desapropriação de terras, ou mesmo regularização das terras ocupadas por trabalhadores, o que diminui as bases sociais destes movimentos. Presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Rio Verde, Cristiane Rodrigues de Faria, tem claro em sua experiência que as terras “pararam de sair” para criar assentamentos a partir de 2006.[12]
Por outro lado, com a política de “melhorar” as condições das famílias já assentadas, o Governo Dilma propôs a Lei 13.001, promulgada em 2014, que serviu de inspiração para a Lei 13.465/17, do governo Temer, inaugurando a prática do “titulômetro” no Incra, com objetivo de incentivar os servidores do órgão a acelerarem a “emancipação” de assentamentos, sem, no entanto, estes estarem dotados com toda a infraestrutura embutida nesta política pública. É inclusive frequente que assentamentos criados há vários anos não tenham seus lotes oficialmente divididos para as famílias que vivem na área. As famílias do assentamento Francisco Julião, por sinal, tiveram as terras desapropriadas em 2006, mas só tiveram o parcelamento oficial de seus lotes pelo Incra em 2013 (Bastos, 2015, p.54).
Artigo de Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), de 2014, já chamavam atenção para os efeitos desta lei, que contou com a participação senadora Katia Abreu. Ela introduziu um mecanismo que facilitava a titulação das terras dos assentamentos rurais que obteriam um perdão de dívidas com o Estado. O artigo avaliava que, em curto prazo, esta lei deveria lançar grandes extensões de terras públicas federais no mercado de terras, pois cerca de 84% de toda a área destinada à reforma agrária nos últimos 20 anos passaria a poder ser titulada e, portanto, voltar a ser reconcentrada. Ou seja, no ano da reeleição de Dilma Roussef, seu governo sancionou uma lei, que ao estimular a titulação de terras de reforma agrária, poderia “ensejar um novo ciclo de concentração” (Ferreira, Valadares, Souza, y Silva, 2014, p.277). Isto por ela facilitava o acesso ao Título de Domínio (TD), ou seja, um lote privado e livremente transferível, por ter definido que os assentados só teriam “direito real sobre a moradia”, cujos créditos recebidos para construir suas habitaçõe fossem quitados com o governo, “ao pagamento da terra” onde a casa se situava (Ferreira, Valadares, Souza, y Silva,, 2014, p.278). Ao manter-se esta redação, subordinou-se o direito à moradia a partir da titulação da terra, através de TD, desestimulando a possibilidade de os assentados requererem a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU), forma de posse da terra, cujo domínio segue do Estado. Pode-se transferir o lote, mas evita-se a reconcentração da terra, objeto principal da política de reforma agrária. Esta legislação favoreceu que todo o território reformado, pelo qual o Estado já despendera recursos consideráveis, volte ao mercado de terras. Após o golpe, a Lei nº 13.465/17, do Governo Temer, só aprofundou mais esta perspectiva aberta pela presidente petista.
Outra lei, promulgada por Dilma, a.13.178, de 2015, seguiu no mesmo sentido, ao ratificar os títulos nulos na faixa de fronteira, disputa antiga entre a União e estados marcados por expansão violenta da fronteira agrícola, como o Paraná. Essa lei, pelo menos, sofreu uma Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Contag, que condicionou sua aplicação ao cumprimento do preceito constitucional de destiná-las prioritariamente à reforma agrária.
Importante frisar que ambas as leis citadas acima, do Governo Dilma, expressaram o ideário que dirigiu a única política agrária estrutural lançada pelo Governo Lula, o Programa Terra Legal[13]. Esta lei tinha o objetivo de regularizar 58,8 milhões de hectares de terras públicas na região amazônica para seus ocupantes. A justificativa era de que se a terra estivesse privatizada, ou seja, atrelada ao Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) de alguém, seria mais fácil coibir o desmatamento, pois uma pessoa poderia ser penalizada por não cumprir o Código Florestal que, na época, ainda era a versão de 1965, derrubada em 2012, durante primeira gestão de Dilma Roussef (2010-2014). Importante observar que este consenso para a solução do “caos fundiário” amazônico reuniu tanto os “ruralistas” como “uma parte expressiva dos atores do campo socioambiental, político, acadêmico e dos movimentos sociais” (Menezes, 2023, p.510). Vale destacar que o Terra Legal e sua perspectiva privatista foi lançado em um período em que o presidente Luís Inácio Lula da Silva estava no auge de sua popularidade, no fim de seu segundo governo. A partir dele, a política agrária brasileira passou a ser enunciada hegemonicamente com o termo “regularização fundiária” de modo que esta deixou de ser associada ao preceito, da Constituição de 1988, que define que “a destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária” (artigo 188).
Depois de se tornar uma das presidentes que menos criou assentamentos de reforma agrária e ter como ministra da Agricultura, Katia Abreu, Dilma Roussef foi derrubada por deputados ligados ao patronato rural brasileiro a pretexto de uma das política destinada a apoiá-los. A acusação que motivou a abertura do impeachment da presidente Dilma Roussef, no ano de 2016, envolveu justamente uma chamada “pedalada fiscal”[14] para cobrir o Plano Safra de 2015, peça-chave do pacto do agronegócio. Matéria publicada na coluna de Sonia Racy, no jornal Estado de São Paulo, sobre a comemoração dos 97 anos da Sociedade Rural Brasileira (SRB) descreve a forma como o patronato rural apoiou o impeachment.[15] O então presidente da SRB, Gustavo Junqueira, afirmou em seu discurso na festividade que “a atuação do agro foi fundamental” para o afastamento da presidente, decisão que teriam tomado já em 2014, depois do discurso “inspirador” de Rubens Ometto[16], em um evento em Nova Iorque. A matéria também descreve que a Frente Parlamentar Agropecuária garantiu 87 dos 92 votos do bloco em favor do impeachment.
Paulo Teixeira, então Ministro do Desenvolvimento Territorial do terceiro mandato do Presidente Lula, na Conferência de encerramento de um encontro de pesquisadores da Rede de Estudos Rurais, em agosto de 2023, expressou a justificativa que moveu o agrorreformismo residual das gestões petistas[17]. Ele afirmou para uma plateia de acadêmicos que todos os governos brasileiros que decidiram falar de reforma agária foram derrubados, começando pelo governo Getúlio Vargas, que se suicidou em agosto de 1954, o que é históricamente incorreto. Só se pode afirmar isso sobre o governo João Goulart, derrubado pelo Golpe Empresarial-Militar por seu projeto de reforma agraria, anunciado 15 dias antes. Mas o surpreendente foi Teixeira ter incluído nestes casos os governo de Lula e Dilma, cujas políticas descritas anteriormente contradizem completamente esta afirmação.
Desde os anos 80, para o MST, reforma agrária só ocorria quando terras privadas eram desapropriadas por não cumprirem a “função social” de estarem sendo produtivas. Mesmo os dados numéricos do Incra desmentem claramente a fala do ministro ao qual está subordinado: o governo que mais desapropriou terras depois da redemocratização, ou seja, já nos marcos da Constituição de 1988, foi o governo FHC, que realizou 2.917 em oito anos. A seguir, vieram os os dois primeiros governos de Lula da Silva, que desapropriou 1.598 áreas (Pinto, 2023), mas destinou mais hectares de terra para reforma agraria do que seu antecessor mediante a compra de propriedades ou a regularização de assentamentos ambientalmente diferenciados (Almeida, 2021). O governo Dilma Roussef, por outro lado, foi o que menos desapropriou: só 131 áreas.
Conclusão
Além de optar por um agrorreformismo residual, só acionado para responder à pressão dos movimentos sociais, o sentido hegemônico da política agrícola do PT se baseou na recriação de instrumentos para apoiar o pacto do agronegócio. Este processo, associado a uma política agrária tímida - e praticamente inexistente durante a gestão de Dilma Roussef – derrubada sob o pretexto de ter feito uma “pedalada fiscal” para bancar o Plano Safra para o agronegócio - determinou o fortalecimento de setores do patronato rural em detrimento dos interesses de seus aliados históricos.
Este processo se deu concomitante a um progressivo silenciamento da expressão reforma agrária, que outrora unificava os movimentos sociais do campo. Em seu lugar, propagou-se o termo agricultura familiar que passou a aparecer como o objetivo das políticas públicas do governo, dissociado da luta por reforma agrária, e, no caso do Pronaf, com data de implementação trocada, afastando seu vínculo com a repercussão política do massacre de Eldorado do Carajás. Este silenciamento também foi verificado nos projetos de desenvolvimento propostos pelo “Conselhão”, da política pública desenhada e debatida para os territórios indígenas e deixou sem resposta demandas dos povos e comunidades tradicionais, que passaram a ter o direito reconhecido pelo Estado a partir da Constituição de 1988. A política de incentivar debates e participação sem a contrapartida de medidas concretas em relação ao problema agrário brasileiro fragilizou politicamente atores historicamente aliados do PT e, na prática, favoreceu ao golpe parlamentar que depôs a Presidente Dilma Roussef. Além disso, o fato de que o único programa agrário estrutural criado nestes governos, o Terra Legal, tenha favorecido a privatização de terras públicas, abriu caminho para que todas as legislações posteriores, criadas no governo Temer e no govero Bolsonaro, aprofundassem estes sentido, como é o caso da Lei 13.465/2017, que, além de facilitar ainda mais a regularização de terras públicas, incluindo-se as urbanas de todo o país, modificou profundamente a própria política de reforma agrária que havia se consolidado nas décadas anteriores.
O fato de não ter ocorrido o fortalecimento político e institucional das prerrogativas abertas pela Constituição de 1988, tornou frágeis todas as políticas públicas dirigidas a populações pobres do campo, tornando possível que logo que assumisse o poder, Michel Temer acabasse “com uma canetada” com o MDA. Ao optar por silenciar a articulação política entre reforma agrária e agricultura familiar, todas as políticas públicas criadas por estas administrações foram facilmente desidratadas. E não adiantou os líderes do PT, em nome de sua coalizão governamental e da importância econômica dos saldos comerciais obtidos pela agricultura voltada para a exportação, evitarem tocar na questão da terra. Os grupos favorecidos por esta opção política não hesitaram em tirar apoio do governo e derrubar Dilma Roussef.
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Notas