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Pampa: o laço, o cavalo e o peão/guasqueiro

Pampa: el lazo, el caballo y el péon/guasquero

Pampa: the lasso, the horse and the peão/guasqueiro

Juliana Porto Machado
UNICRUZ, Brasil
Sirlei de Lourdes Lauxen
UNICRUZ, Brasil
Ronaldo Bernardino Colvero
UNIPAMPA, Brasil

Estudios Rurales. Publicación del Centro de Estudios de la Argentina Rural

Universidad Nacional de Quilmes, Argentina

ISSN: 2250-4001

Periodicidade: Semestral

vol. 13, núm. 28, 2023

estudiosrurales@unq.edu.ar

Recepção: 01 Maio 2023

Aprovação: 16 Agosto 2023



Resumo: Esta pesquisa teve por objetivo refletir acerca da ocupação do pampa na fronteira sul, entre Jaguarão/BR e Rio Branco/UY, com foco na introdução do cavalo, do gado e no trabalho do peão. Como metodologia foi realizada uma pesquisa qualitativa com entrevistas semiestruturada com quatro peões/guasqueiros dessa fronteira. Compreende-se que o artesanato em couro cru, intitulado guasqueria, surge a partir da ligação do homem rural (peão), com o cavalo e seu trabalho na lida campeira (gado). Essa é uma das formas desse sujeito sempre manter suas memórias de homem do campo, mesmo não praticando mais o trabalho de peão, através da pratica do ofício guasqueria, ele consegue transmitir o seu saber fazer e estar sempre conectado ao espaço rural.

Palavras-chave: pampa, cavalo, peão, gado, guasqueiro.

Resumen: Esta investigación tuvo como objetivo reflexionar sobre la ocupación de la pampa en la frontera sur, entre Jaguarão/BR y Rio Branco/UY, centrándose en la introducción del caballo, el ganado y el trabajo del peón. La metodología fue una investigación cualitativa con entrevistas semiestructuradas a cuatro peones/guasqueiros de esta frontera. Se entiende que la artesanía en cuero crudo, llamada guasquería, surge de la conexión del hombre rural (peão), con el caballo y su trabajo en el campo (ganado). Esta es una de las formas en que este sujeto mantiene siempre sus recuerdos de hombre de campo, incluso no practicando el trabajo como peão, a través de la práctica del oficio de guasqueria, puede transmitir su saber hacer y estar siempre conectado al espacio rural.

Palabras clave: pampa, Caballo, péon, ganado, guasquero.

Abstract: This research aimed to reflect on the occupation of the pampa in the southern border, between Jaguarão/BR and Rio Branco/UY, with a focus on the introduction of horses, cattle and the work of the peon. The methodology used was a qualitative research with semi-structured interviews with four cowboys/women from this border. It is understood that the handicraft in raw leather, called guasqueria, arises from the connection of the rural man (cowboy), with the horse and his work in the countryside (cattle). This is one of the ways this subject always keeps his country man memories, even though he no longer practices the work as a cowboy, through the practice of the guasqueria craft, he can transmit his know-how and be always connected to the rural space.

Keywords: pampa, horse, peão, gado, guasqueiro.

Introdução

Este artigo, é um recorde de tese e tem como objetivo refletir acerca da ocupação do pampa na fronteira sul, entre Jaguarão/BR e Rio Branco/UY, com foco na introdução do cavalo, do gado e no trabalho do peão. Como metodologia se utilizou pesquisa qualitativa com entrevistas semiestruturada com quatro peões/guasqueiros dessa fronteira. Compreendendo que o artesanato em couro cru, intitulado guasqueria, surge a partir da ligação do homem rural (peão), com o cavalo e seu trabalho na lida campeira (gado).

Por conseguinte, a presença do gado vacum na América do Sul foi elemento essencial para sua ocupação territorial, apresentando uma imensidão de pastagens que contribuíam para a criação desses animais, dando origem a núcleos sociais estruturados com características pastoris que se espalharam por muitas paisagens desta região. Considera-se que, no século XVIII, o Estado do Rio Grande do Sul (Brasil)[1] e a Banda Oriental Uruguaia constituíam ainda um mesmo território do Pampa atingindo por um extenso processo de construção, uma fronteira móvel de intensa movimentação de sujeitos e veniaga, que se confundiam em meio aos súditos das coroas ibéricas, que disputavam espaço e demarcação de suas propriedades.

Recordemos que a ocupação desta região, como um todo, parte do interesse da coroa portuguesa, no início do século XVI, de povoar a colônia para comercializar seus produtos naturais, impulsionados a partir da expedição de Martim Afonso de Souza[2]. Busca-se, então, difundir essa ideia e repovoar estas terras, utilizando-se do oferecimento dessas, e acaba por instalar o processo das sesmarias no Brasil.

A partir desse momento, Portugal, como aponta Lima (1931), investe na elevação de fortins para proteger a região de Rio Grande de São Pedro (RS), formando comunidades de militares (luso-brasileiro), de civis e de foragidos de Sacramento. A lei da sesmaria estava forjada na obrigatoriedade de cultivar o solo em benefício da Coroa. Dessa forma, expande-se o status dos latifundiários[3] que foram escolhidos para receberem tal doação, que a defenderiam dos invasores na zona fronteiriça.

Todavia, a ocupação de terras, através de doações, termina no ano de 1822, sendo apenas em 1850 que ocorre a firmação da Lei que rege a legitimação das terras ao extremo sul do Brasil. Com isso, o proprietário da terra comprova, mediante documento, o direito à mesma, deslocando do Estado seu poder sobre tal espaço. A terra se torna, de certa forma, um produto a ser comercializado e não mais doado. A datar disso, a figura dos grandes proprietários da campanha sulista passa a demonstrar seu poderio militar e econômico, possuidores de inúmeras cabeças de gado e de grandes extensões de terra.

Segundo Porto (1943), por meio de uma procuração endereçada a sua esposa, no ano de 1533, Martim Afonso autoriza o envio das primeiras cabeças de bovinos e equinos para o Brasil, esses animais encontravam-se em Cabo Verde, sendo trazidos no seguinte ano. Os animais de grande porte e com pelagem vermelha foram introduzidos com a função de prover leite e carne. Tem-se registro do primeiro lote de gado vacum em São Paulo (nas cidades de Piratininga e Santo André), que oferecia uma pastagem adequada para o alimento desses animais. Dois anos depois, a cargo de Duarte Coelho, chega o segundo lote, distribuído na Capitania de Pernambuco e Bahia.

Com a implementação dos engenhos açucareiros, inicia-se uma criação bovina mais intensa nas regiões Nordeste e Sudeste do Brasil. Já que os bovinos eram utilizados como ferramenta de tração, desempenhavam a função de transporte das mercadorias, a movimentação de máquinas e de alimento para os trabalhadores. Destarte, o gado, no Rio Grande do Sul de São Pedro, até então, ainda era desconhecido, pois o estado preservava-se ainda como um território de ninguém, e abundante era a ocupação dos grupos indígenas[4].

O laço, o cavalo e o peão

Todavia, isto se modifica, conforme Porto (1943), com as firmações das reduções jesuítas, sob a bandeira espanhola, na aurora do século XVII. Com a captura dos indígenas da região e a introdução do gado vacum Bos taurus Linnaeus, como ressalta o autor, raça crioulo[5] originária da cruza dos primeiros bovinos inseridos no contexto colonial, que se movimentaram por diversos territórios americanos

Saindo de Guaíra, o Pe. Roque Gonzales atravessou o rio Uruguai e em 1626 fundava a Redução de São Nicolau em solo rio-grandense fundou a seguir as Reduções de Candelária, Assunção do Ijuí e Caaró. Nesta o Pe. Roque foi martirizado pelos gentios em 1628 [...] Fugindo da perseguição dos mamelucos, os Jesuítas de Guaíra empreenderam a incrível aventura de emigrar para o Sul, levando 12 mil índios, dos quais chegaram apenas quatro mil. [...] Entre os padres que chegaram ao solo rio-grandense, estava o Pe. Cristovão de Mendonça, o qual, em 1634, junto com o Pe. Romero, introduzia o gado em nosso território, inaugurando a criação e o povoamento das imensas campinas, gigantescas iniciativa econômica para as Missões e para o futuro do RS e do Brasil. (Barbosa, 2013, p. 19)

Crosby (1993) alude que o bioma Pampa foi modificado profundamente com a chegada desses animais de grande porte, que possuíam hábitos alimentares específicos e junto a si traziam, em seus dejetos, sementes de outros lugares que germinaram neste solo e transformaram sua flora a partir do século XVI. Os grandes rebanhos, de certa maneira, impediam o crescimento massivo de floresta sobre a área de campo de gramíneas. Esses animais se adaptaram e se desenvolveram em grande escala com reduções e, no século XVII, já se encontrava a elevação de inúmeras estâncias[6] concentradas na gerência da figura do índio missioneiro

A criação de gado havia crescido muito e tomado largo desenvolvimento. Diz Capistrano de Abreu que o uso do couro caracterizaria a época, e propôs se désse á phase colonial em / questão o nome de idade do couro. De facto, em toda parte, em todos os misteres, se achava o couro: nem só no Brasil, mas em todo o continente. Alguns annos depois de Capistrano, um estudioso uruguaio fez a mesma observação e propôs a mesma caracterização, para a população da bacia do Rio da Prata. (Calógeras, 1938, p. 39)

Entre 1630 e 1640, as Reduções sofrem com ataques dos bandeirantes paulistas, que tinham por objetivo a captura de indígenas para serem utilizados como mão-de-obra escrava. Em consequência deste confronto, o gado que estava confinado em algumas áreas das Reduções é abandonado e passa a se reproduzir livremente em campo aberto. Em referência a Porto (1943), o autor cita o caso da Missão de Santa Tereza, que em 1632 contava com 500 cabeças de bovinos, os quais, por estarem soltos, reproduzem e originam a Vacaria dos Pinhas, com milhares de animais indômitos. Sob a malha destes ataques dos bandeirantes, o cenário do Pampa se transforma em pradarias com abundância de animais, especialmente bovinos e equinos. Os cavalos foram conduzidos para esta região vindos da Argentina, mais especificamente de Assunção e Corrientes pelos padres Jesuítas, na mesma época do gado vacum.

Destaca-se que a Vacaria do Mar, localizada ao sul do rio Jacuí e a leste de Maldonado, na fronteira Rio Grande do Sul-Uruguai, estendendo-se a sul de Trinta e Três, formava-se numa grande extensão de gado bovino livre, durante quatro décadas, a qual, conforme Assunção (apud Betolaza, 2011), se manteve afastada dos conflitos. No entanto, isso se modifica com a ocupação portuguesa dos territórios sulistas, ao fundarem a Colônia do Santíssimo Sacramento, a datar de 1680, no lado esquerdo do rio da Prata, os quais, utilizando-se do apoio dos Charruas, começam a abater esses animais para extraírem o couro, o sebo e a graxa. Origina-se, na região rio-grandense e oriental, a courama concomitante ao contrabando, que interessava sobremaneira aos portugueses e adentra neste mercado.

O cavalo torna-se importante ferramenta de locomoção para os Charruas quando estes estavam em combate contra os conquistadores europeus ou inimigos indígenas, os quais desenvolveram técnicas de doma e monta que os auxiliavam em lutas, constituindo uma forte relação entre o homem do Pampa e seu cavalo[7]. No retorno dos padres Jesuítas, em 1682, novamente se exerce a pecuária e a agricultura, instalando novas reduções. Erguendo os Sete Povos das Missões (São Nicolau, São Luiz, São Lourenço, São Miguel, São João, Santo Ângelo e São Borja), utilizando os guaranis como guardas, os padres foram enviados para diferentes pontos estratégicos desde o rio Uruguai, deslocando-se além de Tape, como uma forma de se prevenir de invasores (Torronteguy, 1994).

A firmação do Tratado de Madri[8] forçou a retirada dos padres jesuítas em definitivo, no ano de 1750. Os combatentes das duas Coroas investiram contra os grupos indígenas que não desejavam sair dos lugares que ocupavam e que fixaram suas povoações; esses foram derrotados e, novamente, as reduções são abandonadas.

No século posterior, surgem as primeiras estâncias de modelo pastoril administradas por empreendedores vindos de Santa Catarina e de São Paulo. Os militares que aqui já se encontravam para defender a zona de fronteira naturalmente começam a investir na criação ganadeira e, com a doação de terras, como pagamento de seus serviços pela Coroa, os mesmos expandem suas propriedades.

No que tange à ocupação de terra, do lado Oriental, em similaridade ao sistema de sesmarias de Portugal, há os concessionários da terra, outorgados pela Coroa Espanhola. Logo, os açorianos[9] que já se encontravam neste território sulista, desde 1752, também investem na produção pecuarista, por volta de 1852, e o plantio de trigo que até então era predominante, como meio de sustentação destes sujeitos, passa a ser pouco ou quase nada explorado. Apesar disso, Simonsen (1973) indica que, nos anos 1793 a 1814, o Rio Grande do Sul exportava para Lisboa grande quantidade de trigo.

A Banda Oriental, com a concessão de terras e o surgimento das estâncias, segundo Caravaglia e Gelman (2003), desenvolve-se economicamente, no século XVIII, com a salga da carne para ser exportada como alimento para os cativos da América. Porém, essa forma de produção era considerada de pequena escala quando comparada ao número de animais abatidos a cada ano para comercializar o couro, o sebo e outros subprodutos.

Por conseguinte, ressalta Vidaurreta (1987), o Rio Grande do Sul se distinguia das outras regiões brasileiras, por causa de suas morfologias geográficas, com inúmeros rios e regiões altas que atingiam desde o Atlântico até a Argentina. No ano de 1820, em ligação com a Banda Oriental, as bases econômicas do estado se estruturam na exploração do charque e no plantio de trigo, cuja queda auxiliou diretamente no crescimento das charqueadas[10] e na comercialização do couro e do sebo.

O charque era destinado para as regiões de exploração de culturas como o café e a cana-de-açúcar. Nesse processo de domínio dos rebanhos, estabelece-se o comércio ilegal do contrabando entre as fronteiras, uma vez que, no lado Oriental, já tinham fixado raízes muitos brasileiros que contribuíram para o desenvolvimento das charqueadas no Rio Grande do Sul. Nas palavras da autora:

Esa frontera de gran movilidad conformö tambidn un contexto etnico diferenciado. Una gran hibridaciön social determinö que los riograndenses, geogräfica y culturalmente, se identificaran mäs con los pai'ses de la cuenca platense que con el Imperio. Tradiciones, costumbres y vocabulario otorgaron a Rio Grande del Sur un caräcter regional tipico de äreas de frontera. Ello contribuye a explicar tambien que sus jefes politicos se identificaran en forma natural con los caudillos uruguayos participando en sus movimientos revolucionarios mediante el auxilio armado, el de ganado y ofreciendo aquel territorio como seguro refugio a los vencidos, tal como sucediö tras el levantamiento del general Juan Antonio Lavalleja contra el presidente Fructuoso Rivera en 1834. En la realidad, la frontera era un limite ficticio, un espacio abierto sin trabas ni obstäculos, a la vez que una zona de intenso contenido cultural que permitiö la proyecciön del Brasil al sur de su territorio. Ello significö, en consecuencia, mantener una hegemom'a que chocaba con los intereses de la clase comerciante de Montevideo y con la poli'tica de neutralidad establecida con el gobierno argentino por la Convenciön Preliminar de Paz de 1828 que puso fin a la guerra entre ambos pai'ses y die nacimiento al Uruguay como naciön independiente. (Vidaurreta, 1987, p. 418)

Nesse âmbito, a fronteira entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai era um espaço de compartilhamento de interesse, que não se direcionava aos desejos do Estado representados pelo Rio de Janeiro e por Montevidéu. Como defende Calógeras (1938), a região da bacia do Rio da Prata, neste período, representava uma fronteira, sem ser fronteira que impunha limites, mas sim uma unidade política e geográfica, pois suas linhas naturais e artificiais não separavam os povos. “[...]Sempre que uma revolução, uma revolta, um levante ocorriam, alongavam-se os olhos para a banda da fronteira, onde os grupos tinham certeza de encontrar auxilio e apoio, sempre que o pedissem” (Calógeras, 1938, p. 159).

Com a constituição do Estado Oriental, observa-se uma oscilação no mercado econômico até então lucrativo para os senhores de terra gaúchos, os grandes estancieiros. A perda dos campos cisplatinos com seu alto rendimento de pastagens direcionadas à alimentação do gado, que se desenvolvia neles, causou grande perda aos estancieiros que não teriam mais acesso aos campos.

Em números, de acordo com Bandeira (1998), chegava a mais de 14 milhões de cabeça de gado a serem retirados deste espaço entre o período de 1817 a 1828, ficando, desta forma, nítido o baque econômico sofrido pela elite rio-grandense, demonstrando a importância do gado nas bases econômicas da zona de fronteira. Contudo, entre entraves políticos e comerciais, seriam travadas mais algumas disputas nessa região[11] limítrofe.

O pós-guerra dos Farrapos contribui para a reestruturação do mercado charqueador do sul que volta a concorrer como os saladeiros uruguaios. Há, no ano de 1850, uma reconfiguração de espaço com o crescimento dos centros urbanos e a abertura de portos no Estado, como o de Rio grande, de Porto Alegre e de Pelotas, que facilitavam a comercialização para Montevidéu e Maldonado, fortalecendo o vínculo com o Uruguai.

Mörner (2004) refere-se a pecuária bovina como uma forma de produção que auxiliou e se adequou as demandas das duas Coroas, sendo marcada por uma exploração predatória e instável comercialmente nos séculos XVII-XVIII, marcado pelos ciclos do ouro e do diamante e também da prata. Passa o uso da carne e do couro a ser altamente valorizado, investindo na produção dos rebanhos no sistema de latifúndios durante o século XIX, o que contribui na ampliação de zonas de mercado entre RS/Brasil e Uruguai. O crescimento urbano dos dois lados e o investimento monetário nas produções impulsionaram a industrialização da fronteira Estado do Rio Grande do Sul (Brasil)-Uruguai, no século XX.

Retomam-se os changadores[12], mencionado por Schlee quando se refere a fronteira entre Jaguarão e Rio Branco, em suas palavras

[...] minha região da fronteira foi, primeiro, como todo o pampa, a terra sem donos, da abundância e do gado [...] livre trilhado por gaudérios e changadores, os bandidos coloniais [...] matriz inicial do homem pampeano [...] chamado gaucho e gaúcho. (Schlee, 2004, p.51)

Os changadores foram os primeiros sujeitos a retirarem o couro do gado vacum, a praticar a carneada, por meio de uma lança confeccionada artesanalmente, consistente de um pedaço de bambu com uma lâmina de metal, modelada em meia lua, amarrada firmemente em uma ponta. Começando pelo corte nos jarretes[13] do animal, seguido pela sangria, tal prática era realizada com o animal posicionado junto ao solo e desse retiravam o couro, os sebos e a língua; a carne, neste período de 1750, não era um produto comercialmente valioso. Os changadores estabelecem a primeira etapa da guasqueria, a obtenção da matéria-prima através da carneada. Todavia, não há registro se os mesmos utilizavam o couro para fazer objetos voltados para a indumentária de montaria.

A figura do peão surge atrelada à fundação da estância, o qual, no contexto fronteiriço de Rio Grande do Sul e Uruguai, era o sujeito considerado mestiço e índio e trabalhava ao lado dos cativos negros. O peão respondia ao Estancieiro, o senhor das terras que desempenhava, no primeiro momento, a função de chefe militar, sendo que muitos soldados se tornaram peões (Gomes, 2016)

Em uma fazenda pastoril, podia-se assalariar peões ou comprar cativos. Em teoria, a primeira opção era mais vantajosa. O peão era remunerado após trabalhar por um mês. Havia peões remunerados plenamente apenas quanto pediam as contas. O cativo exigia pesada imobilização de capital, antes do início das atividades, recuperada apenas após um, dois ou mais anos de trabalho. O peão era despedido quando do refluxo da produção. Quando se acidentava ou morria, não causava perdas aos fazendeiros. O mesmo não ocorria com o cativo. Tanto o peão como o cativo recebiam moradia, comida, erva mate e, às vezes fumo e, comumente, peças de roupa, como parte da remuneração. (Maestri, 2008, p. 22)

A autora demonstra que, para o estancieiro, era mais barato utilizar mão de obra assalariada do que investir no cativo[14]. Comenta que as atividades de lida de um peão necessitavam de conhecimento, era um trabalho árduo que exigia uma conexão entre mente e emprego da força física, especialmente para o manejo com o cavalo e com os rebanhos. Era preciso que o peão fosse iniciado nesse ofício ainda jovem, para, assim, quando envelhecesse, desempenhar a função de capataz. Os capatazes, “[…]eran personal permanente y de confianza [...] coordinaban las actividades de las otras categorías de trabajadores. Vivían en la estancia y percibían un salario monetario y en especie (alimentos, ropa) también recibían animales como retribución a su trabajo” (Moraes, 2005, p. 06). Junto à figura do peão, do capataz e do estancieiro, havia, também, o peão posteiro que protegia as reses nos lugares mais distantes da estância, os quais serviam de soldado para combater saqueadores e, normalmente, lhe era permitido cultivar um pedaço de terra e possuir alguns animais, sendo que dedicava seu tempo livre para a produção manual de objetos (Martins, 1944). A estrutura da estância estava calcada em uma organização que consistia da casa do estancieiro, do galpão (lugar dos peões), de currais, mangueiras e potreiros, da cacimba, da capela, e de cemitérios, sendo a porteira a linha que demarcava o começo da propriedade.

O galpão, descrito por Martins (1944), era feito de torrões de barro e palha, com aberturas que representavam portas e janelas, cobertas por uma tira de couro. Ao centro, sempre tinha uma fogueira para aquecer os peões que deitavam sobre seus pelegos, que configurava um espaço de prosas, o lugar ao qual o peão pertencia, onde tinha tempo com seus pensamentos e se iniciava no conserto de suas ferramentas de montaria, através do jogo de tentos.

Por muito tempo, as cercas das estâncias eram de pedras, construídas pelos cativos, e os rebanhos eram cercados por obstáculos artificiais, como fossos e valos; todavia, isso se modifica no ano de 1855, na Argentina, que adota o uso de arame para demarcar as terras pertencentes à estância. O Uruguai segue este sistema de cerceamento das propriedades, fato que influencia diretamente o Rio Grande do Sul, em 1870, particularmente, pela ligação comercial existente entre a Inglaterra e o Uruguai que favorecia essa obtenção de arame, sendo que em 1877 o Uruguai importa mais de seis milhões de arame (Franco, 2001).

O arame, segundo Brito (1978), foi um elemento transformador e ao mesmo tempo invasor, pois modificou a tradição da produção de animais, estendendo-se por milhares de hectares, estabelecendo limites, por dentro dos açudes até os morros. Os estancieiros acabaram por enclausurar, por meio de linhas de metal, a liberdade de ir e vir da campanha do Pampa; nem andarilho ou animal poderia cruzar os campos sem ser impedidos pelos aramados, atingindo até mesmo o espaço urbano, modificando completamente os costumes territoriais das fronteiras.

O aramado auxiliou no confinamento e na domesticação do gado bravio e minimizou significativamente os conflitos entre proprietários de terras, pecuaristas e agricultores, além de impedir a fuga constante de animais, possibilitando também o controle da produção de animais através da delimitação de piquetes e/ou potreiros e seu melhoramento reprodutivo. Como consequência, muitos peões posteiros foram dispensados e migraram para os centros urbanos, aceitando subempregos para sobreviver (Franco, 2001).

Corroborando com o autor mencionado, Nahum defende que:

las consecuencias económicas del cercamiento fueron esenciales para la modificación estructural del país, también tienen enorme importancia sus consecuencias sociales. El alambre determinó una menor necesidad de mano de obra, la consiguiente expulsión de la estancia de peones y agregados, la formación de núcleos suburbanos y rurales ("pueblos de ratas") que los congregaban; en suma, la definitiva marginalización de la población pobre de la campaña y el inicio de la desaparición del gaucho. (Nahum, 1968, p. 62)

Nesta transformação da paisagem da zona fronteiriça de Rio Grande do Sul e Uruguai, o peão ainda se conserva como uma figura atuante no trabalho do campo. Quanto a ser guasqueiro, com os grandes rebanhos de gado e equinos, o peão começa a utilizar o couro cru em abundância para criar peças, como laços, cabeçadas, rédeas, boleadeiras e outros.

A guasqueria está atrelada à cultura rural, aos costumes criados na relação do peão com seu cavalo e à lida no campo. Tem-se na introdução do gado vacum o marco fundamental para seu surgimento, ao transfigurar a paisagem do Pampa e a economia. Nesse lugar de transformações tangíveis e intangíveis, desenvolve-se este ofício em couro cru, que acontece pela quantidade de matéria-prima que havia nos primórdios dessa zona de fronteira. Conserva-se como um saber secular por estar intrinsecamente ligada aos saberes e fazeres do homem rural, do peão que se tornou guasqueiro.

Na visão do guasqueiro jaguarense A.B.[15] (2019), foram os índios que iniciaram como guasqueiros dominando a técnica do couro cru, com a criação das boleadeiras e a doma dos cavalos xucros. Nesse sentido, o guasqueiro jaguarense V.S.[16](2019) acresce que havia muitos bois e cavalos bravios e como não havia recurso para domesticação deste, os sujeitos que habitavam essa região desenvolveram a guasqueria. Já o guasqueiro jaguarense C.C.[17](2019) menciona “Acho que desde que se começou o trabalho no campo, no tempo dessas guerras antigas aí já se via em seus cavalos os arreios de couro, então por aí já temos uma base de quando surgiu, acho que não dá para se prever com exatidão a época só”.

Carvalho, citada por Fontana (1988), acresce que os grupos indígenas desta região de campos abertos utilizavam o couro de lebres e de pequenos animais para criar as boleadeiras, a serem utilizadas nas caçadas, mas, com a introdução do gado vacum e das trocas culturais com estrangeiros, como Árabes[18] e Mouros, nota-se que o sujeito do campo[19] passa a utilizar o couro cru como técnica de criação de objetos: “la rienda de los árabes es tejida en cuero y com azoteras como las nuestras: el reno que usamos es el freno árabe y muchas de nuestras costumbres revelan el contacto de nuestros padres com los Moros de Andalucía” (Fontana, 1988, p. 11). A guasqueria expressa em seu matiz o multiculturalismo de memórias de diferentes grupos étnicos que se manifestaram por meio do saber fazer manual, numa harmonia entre sujeito, corpo, mente, espaço e o Outro. Na formação do guasqueiro, que tem sua identidade vinculada “al domador, al tropero, al péon de estancia, al esquilador y alambrador” (Fontana, 1988, p. 12), estas são imagens representativas do sujeito que percorria os campos no lombo do cavalo.

Imagem que se reflete ainda na realidade do peão contemporâneo, como podemos perceber na afirmação do guasqueiro jaguarense A.B. (2019) em uma situação do seu dia a dia de trabalho no campo, em suas palavras o “peão faz todo o serviço do campeiro, caseiro, alambrado essa parte toda. Na lida do campo eu que curo os animais que adoecem, faço arame, limpeza da volta e domo ainda do jeito tradicional, quebrando os queixos”.

Logo, a técnica de guasqueria inicia como uma atividade de confecção com aspectos rústicos dos aparatos de monta e de uso diário da lida, tornando-se rapidamente uma necessidade para a realização do trabalho com os animais. Assim, por meio da transmissão de um guasqueiro que dominou uma técnica mais fina do trato com o couro, outros passam a se interessar neste ofício. Os laços, as cabeçadas, o tirador, as boleadeiras que um sujeito punha sobre seu cavalo eram uma forma de status social – quanto mais fino o trançado e a qualidade dos objetos, mais abastado economicamente era o cavaleiro, uma forma de diferenciar o peão do patrão e o peão do capataz.

Segundo Fontana (1988), o guasqueiro centrava sua figura no sujeito mais velho da estância que já não podia mais realizar tarefas que dependiam da força física, esse então ficava em pequenas atividades de limpeza ao redor da sede da estância, permanecendo em seu tempo livre no galpão tecendo tentos e consertando cordas para o plantel de peão, especialmente nos dias de chuvas. Formava-se, a seu redor, uma rede de transmissão desse saber, ao ensinar aos filhos que futuramente seriam também peões e, também, para todos aqueles que estavam dispostos a ter paciência e confiar na memória. O guasquero rio-branquense A.S.[20](2020), em suas lembranças do tempo de peão, menciona que, nos dias de chuva, quando era impedido de sair a campo, era comum chegar às estâncias e ver a peonada reunida no galpão, sentada em tocos, tomando chimarrão, contando causos e consertando as rédeas. O mesmo menciona o guasqueiro jaguarense V.S. (2019) “os guasqueiros eram os homens de campo que domavam e quando morria gado no campo eles tiravam o couro e dali produziam ferramentas para poder trabalhar com os baguais, mas eles faziam em dias de chuva”

El artesano del cuero debe poseer conocimientos de campo pues debe saber qué azotera da mejor azote, qué mango de rebenque tiene mejor peso, que los lazos y sobeos deben ser no muy pesados ni muy levianos, por lo que deberá calcular el ancho de sus tientos de acuerdo al espesor del cuero a utilizar y el tamaño y peso de la argola, que las estribeiras, rendas, cabestros y pescueceras deben ser flertes como para soportar cualquier tracción; que determinadas trenzas y cueros son más flertes que otros [...] (Fontana, 1988, p. 13)

O guasqueiro jaguarense C.C. (2019) refere-se ao conhecimento que o guasqueiro precisa ter sobre a peça de couro cru, para que não haja perdas. Por isso, apesar das dificuldades existentes na atualidade, ele afirma que quando tem a oportunidade prefere ele mesmo, com suas facas, realizar o abate e a carneada do animal, porque ele sabe o local onde cortar, obtendo o máximo de aproveitamento do couro: “tem que saber carnear, porque, quem não sabe fura tudo, daí não presta mais para nada, não tem como fazer um tento sem quebrar, muito menos um laço”.

Acrescenta ainda:

O couro bovino tem que procurar ver se não teve carrapatos, tem lugares por aí estâncias nas costas não tem carrapatos ou berne. Se tiver carrapato tu passas a faca no lugar do carrapato e couro fica em falso e o berne fica o furinho, daí esse couro não presta quando for tirar tento vai arrebentar. (Guasqueiro C.C., 2019)

O laço de couro cru, conforme Osornio (2014), foi o que possibilitou ao sujeito da campanha, até o final do século XIX, realizar as lidas campeiras, sendo uma ferramenta necessária para o desenvolvimento da pecuária na região do Pampa. Os animais bravios são capturados e domesticados pela astúcia no manejo do laço pela força do peão. Para o autor, o laço foi uma forma mais branda no trato com os animais, substituindo as boleadeiras, em certo despertar da empatia do homem para com o animal. “El cuero mejor para el lazo trenzado es el de novillo macho castrado y adulto, de pelo o color uniforme y oscuro: colorado, hosco, barroso, pues, en los pelos con manchas blancas el cuero es desparejo en su resistência” (Osornio, 2014, p. 08).

Garcia (2009) cita que, a salvo as boleadeiras, todas as outras peças que fazem parte da indumentária para a monta do cavalo, como arreios, cabeçadas, rebenque, laços, rédeas, buçal, maneias e outros, são originários da bagagem cultural dos conquistadores europeus, mas que são alterados em suas representações e em seus valores simbólicos pela forma de manejar o couro cru e de criar tentos. Tornam-se uma essência da tradição e da identidade do sujeito rural que vivenciava a zona fronteiriça do Pampa.

A guasqueria, num primeiro momento, gira em torno da facilidade de conseguir a matéria-prima, somada ao crescente uso do cavalo como veículo e ferramenta auxiliar na domesticação ganadeira. É perpendicular a presença abundante do gado e o início do sistema de estâncias, com emprego de uma técnica rudimentar para uso particular e cotidiano, uma resposta à demanda do contexto. Aproximando-se do século XIX, a guasqueria assume um espaço mais concreto, período em que as estâncias estão alcançando notoriedade. Com isso, o peão torna-se um trabalhador requisitado, tendo a oportunidade de escolher a quem prestar seus serviços e, nessa valorização, passou a dedicar-se ao aperfeiçoamento das habilidades do ofício de criar objetos com couro cru, assumindo-se também como guasqueiro

O homem que antes produzia utensílios exclusivamente para o trabalho e para as funções básicas do seu dia-dia converte-se neste momento num prestador de serviço, suprindo as necessidades das estâncias e tornando esse ofício um modo de ganhar a vida. Devido à beleza e à qualidade dos objetos confeccionados pelos guasqueiros, os trabalhos mais elaborados passaram do grau de instrumentos de trabalho para o “status” e ascensão social, principalmente quando eram combinados com acessórios de prata, metal, de muito presente na região do pampa e sinônimo de riqueza e importância [...] (Alvares, 2014).

Todavia, a guasqueria não chegou a ser reconhecida em sua técnica de tentos finos ou na habilidade da mão e da mente do guasqueiro em criar trançados e desenhos no couro, pois estava à parte da imagem criada no imaginário social do sujeito rural como heroico e guerreiro. A este ofício e a seus praticantes, a glória estava salvaguardada ao galpão, no lugar das ferramentas. Era uma atividade relacionada a um processo de criação envolto pela sujeira, devido à carneada e ao manejo com o couro cru, algo irregular e rude, sem valor. Essa característica que lhe relegaram fez com que a guasqueria não tivesse sua memória documentada pelos viajantes e historiadores no decorrer dos séculos. Em suas poucas menções, aparece como um saber rural dos peões velhos e, por ser assim, algo até mesmo extinto frente à indústria (García, 2009).

Conclusão

Em um levantamento sobre as menções da guasqueria e seu esquecimento, García (2009) perpassa por reportagens e análises antropológicas que ocorreram no Uruguai, entre os anos 60 e 90, em que imperava a visão trágica do fim da guasqueria, um saber fazer que seria esquecido e desapareceria junto com o cavalo frente à modernização do mundo. Nesse olhar mais nostálgico, o guasqueiro jaguarense Pedro (2019) reforça esse pensamento ao dizer que “isto (guasqueria) está se acabando, ninguém mais tem interesse em aprender, já não há mais peões nas estâncias e nem gado” (Guasqueiro Pedro, 2019). Em outra perspectiva, o guasqueiro rio-branquense A.S. (2020) assegura que a guasqueria não terminará, porque ainda tem muito cavalo e gaúcho; quando esses desaparecerem, certamente a guasqueria terá seu fim, mas assevera que a valorização do cavalo criollo ainda seguirá por muito tempo. Reforçando esse pensamento, alude o guasqueiro jaguarense C.C. (2019) “não se termina nunca, sempre vai ter gente fazendo, porque sempre vai ter cavalos e o trabalho do campo”.

A guasqueria é dita como um ofício tradicional da cultura rural, no entanto, pode-se verificar que conserva rastros mnemônicos desse passado do campo sendo representados na obra, só que, na contemporaneidade, criados em ambiente urbano e adotando também um caráter comercial com o uso de diferentes matérias-primas. Perante isso, a guasqueria apresentada em suas etapas será classificada como tradicional quando utiliza apenas o couro cru e guasqueria moderna quando utiliza-se da técnica e do saber fazer tradicional para a criação de objetos com outras matérias primas, como o caso da sola, do couro branco e da corda de seda.

Expressando opiniões próximas, o guasqueiro A.S. (2020), de Rio Branco, e o guasqueiro V.S. (2019), de Jaguarão, especificam que só utilizam couro cru na produção de objetos, pois esse é propício por sua durabilidade e resistência às intempéries e para aguentar o cavalo. De acordo com eles, pode passar anos e o produto feito em couro cru preservará sua qualidade, além de apresentar uma estética considerada mais bonita, pois com o couro cru é possível fazer bordados e tranças. Asseguram, ainda, que o sujeito que se identifica como guasqueiro deve saber carnear, estaquear, lonquear, sovar, tirar os tentos e trançar, tendo junto a si suas próprias ferramentas, confeccionadas por ele mesmo.

Na atualidade, apresentam-se dois perfis de guasqueiros, o tradicional, que só utiliza couro cru pela motivação mencionada acima, e o que podemos denominar de guasqueiro contemporâneo, que passa a introduzir, em sua produção, diferentes matérias-primas, como a sola e o fio encerado. Porém, pode ainda ser considerado guasqueiro aquele que dominar o manejo da técnica tradicional em couro cru e utilizar predominantemente a mão como ferramenta principal do processo de criação. Essa seria uma forma da guasqueria ainda seguir atuante? Mesmo o guasqueiro contemporâneo ainda preserva, em sua identidade, a ligação com o cavalo e já exerceu e/ou exerce o trabalho de peão.

Diante de uma guasqueria que, a princípio, estava voltada para ser auxiliar de outro ofício que cresce no interior dos galpões de estância e passa a ser um ofício por si só calcado na especialização de técnica através da transmissão de conhecimento de pai para filho (guasqueria tradicional) ou aprendida através de mecanismos digitais (guasqueria contemporânea), ater-nos-emos no fato de que, apesar das mudanças sociais no espaço rural de Jaguarão e de Rio Branco, a guasqueria também se transforma em meio ao jogo de recordar e transformar, sua presença se encontra atuante no centro urbano das duas cidades.

Vale ressaltar um aspecto de relevância contemporânea: no ano de 2022, a prática da guasqueria foi oficialmente reconhecida como patrimônio cultural imaterial no Uruguai. Essa distinção foi conferida pela Comisión del Patrimonio Cultural de la Nación, em conformidade com os princípios da Convenção de Patrimônio Cultural Imaterial da UNESCO. Esse reconhecimento visa destacar a importância das conexões identitárias entre os praticantes dessa tradição e suas respectivas comunidades.

No contexto brasileiro, especificamente no Estado do Rio Grande do Sul, um marco significativo ocorreu em 2023, quando um projeto de lei foi implementado para conceder o status de patrimônio histórico e cultural à atividade dos guasqueiros. Esse reconhecimento segue o exemplo de várias províncias argentinas que também valorizam a importância intangível desse ofício de herança patrimonial. Essas ações refletem um esforço conjunto para preservar, celebrar e compartilhar o legado cultural e as habilidades que compõem a rica tapeçaria das tradições rurais dessas regiões. Por fim, entre emaranhados de tentos e cortes de sola, o guasqueiro tradicional/contemporâneo segue criando seus objetos artesanais, como uma forma de sustentabilidade econômica e de reconexão com suas tradições.

Agradecimentos

Agradecemos ao financiamento obtido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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Notas

[1] Neste contexto, o mesmo pode se afirmar sobre Jaguarão e Rio Branco, que serão tratados como um território de compartilhamento.
[2] A carta patente de Martim Afonso de Souza registra os primeiros espaços plantados no Brasil colônia, tendo como cultura a cana-de-açúcar e a instalação do engenho São Vicente (Porto, 1943).
[3] Os latifundiários foram construídos a partir das doações das sesmarias e tinham uma característica de tamanho específicos, mas que foram ampliadas e apropriadas pelos militares no período das Guerras Cisplatinas.
[4] “No século XVI, [...] Os Charrua e Minuano, caçadores, pescadores e coletores dos campos, ocupavam a antiga Banda Oriental do Uruguai, que dividiam com dois grupos horticultores conhecidos como Chaná e Guarani. Especificamente do Rio Grande do Sul os Charrua e Minuano estavam localizados nos campos do Sudoeste e Sudeste até a altura dos rios Ibicuí e Camaquã com extensões para o pampa uruguaio e pequena porção do território argentino. Os Charrua moravam mais para o oeste, ocupando ambas as margens do rio Uruguai, e tiveram maior contato com o conquistador espanhol; os Minuano se localizavam mais para leste, nas áreas irrigadas pelas lagoas do Patos, Mirim e Mangueira, com extensão até as proximidades de Montevidéu; tiveram mais contato com os portugueses” (Becker, 1991, p. 344).
[5] Há registro de sua presença no bioma Pampa até o século XX.
[6] “Estância é denominada, entre os séculos XIX e XX, exclusivamente como propriedade voltada para criação intensiva de gado bovino [...] estendiam-se por centenas de hectares. Eram cercadas de muralhas, de cercas vivas de cactos, de sebes ou valados. Cada estância estava dividida em vários distritos ou rodeos, contendo, cada uma, cinco a seis mil cabeças de gado” (Lugon, 1976, p. 128).
[7] Outro fato a ser mencionado é a figura do tropeiro destacando “Cristovão Pereira de Abreu que em 1729 conduziu a primeira leva de centenas de cavalos e mulas. Na segunda viagem, que durou 14 meses, com 130 tropeiros, levou 3000 animais à feira de Sorocaba [...] em 1732 abriu a famosa estrada ligando os campos de Viamão a Lages, através do vale de Rolante [...] a partir de 1736, com 160 homens, durante cinco meses, dominou todo o sul do continente, edificando fortificações, com o objetivo de repelir um eventual ataque de castelhanos e preparando o ambiente para a fundação oficial do Rio Grande do Sul, no ano de 1737, pelo brigadeiro José da Silva Pais. [...] O ciclo do tropeirismo prolongou-se por 200 anos, desde Cristovão Pereira de Abreu” (Barbosa, 2013, p. 64).
[8] Firmado em Madri, na Espanha, pelos monarcas D. João V (Portugal) e D. Fernando VI (Espanha) tal tratado geopolítico teve como principal objetivo o fim das disputas territoriais entre os Estados Ibéricos (Reis, 1997).
[9] “[...] A Coroa garantia aos imigrantes a propriedade de um pequeno terreno, mas não seu sustento. Assim, somente em 1770 uma leva de imigrantes açorianos chegou à província para povoar a região das missões. Por causa das dificuldades de transporte, esse grupo se fixou na área onde hoje está a cidade de Porto Alegre. Praticavam a agricultura de pequena propriedade” (Luvizzoto, 2010, p. 23).
[10] No Rio Grande do Sul, a mão de obra nas charqueadas era escrava; no lado Oriental, não exclusivamente de negros cativos, utilizavam-se também sujeitos, em sua maioria peões, assalariados nos saladeros.
[11] “Com a Proclamação da Independência do Uruguai, em 25 de agosto de 1825, a Província Cisplatina é ferida, perdendo parte de seu território. Encabeçada pelo Cel. Bento Gonçalves da Silva, Honofre Pires e Domingos Crescêncio, entre outros heróis gaúchos, iniciou em 20 de setembro de 1835, a Revolução Farroupilha, com a tomada do Palácio Piratini, e a expulsão do então Presidente Provincial Fernandes Braga. Como ato contínuo e conseqüência o Cel. Antônio de Souza Neto, em 11 de Setembro de 1836, proclama a Independência da República Sul-riograndense, no campo dos Meneses em Piratini, estabelecendo também ali a primeira capital do novo País. Até hoje, a bandeira oficial do Rio Grande do Sul mantém em seu escudo central a inscrição REPÚBLICA SUL-RIO-GRANDENSE. Em 1845, dia 28 de fevereiro, o traidor Farroupilha David Canabarro assina o tratado de Armistício, a Paz do Ponche Verde. Este tratado, contudo, não desfaz o ato da Proclamação da Independência do Rio Grande do Sul, ao contrário, o mantém intacto. [...] O Rio Grande do Sul tem história para se manter no mesmo caminho do Uruguai” (Luvizotto, 2010, p. 45).
[12] Considerados contrabandistas que saíam pelo Pampa a caçar gado manso ou fugido, sendo um problema para as duas coroas, pois esses sujeitos infringiam as leis comerciais impostas por ambos. Ainda, também, considera-se, como ressalta Moraes (2005), como figura que dá origem ao gaucho do Pampa.
[13] Na zootécnica, é definido como nervo ou tendão da perna dos bois e cavalos.
[14] Cabe ressaltar que neste período mais de 25% de mão de obra nas estâncias provinha dos sujeitos escravizados, que estavam subjugados pelas ameaças que o patrão proferia por ter sob seu o poder os familiares desses sujeitos.
[15] A. B., o habilidoso guasqueiro, nasceu em Jaguarão, Rio Grande do Sul, e conta com 35 anos de vida. Seu ambiente de criação estava enraizado no contexto das estâncias, já que seu pai era um peão experiente. Desde sua infância, ele mergulhou nas atividades rurais e, enquanto ainda era jovem, deu os primeiros passos na lida do campo. Apesar das circunstâncias, ele encontrou espaço para completar sua educação fundamental. Conforme os anos passaram, A. B. sentiu a necessidade de aprimorar suas habilidades em guasqueria. Esse interesse cresceu especialmente devido à sua interação com animais e à percepção dos custos elevados das indumentárias em couro. Essa conscientização o inspirou a buscar conhecimento na arte da guasqueira, pois compreendeu que a habilidade de trabalhar o couro não só era valiosa do ponto de vista econômico, mas também lhe permitiria contribuir de maneira mais profunda para as atividades rurais que moldaram sua vida desde cedo.
[16] O guasqueiro V.S., nascido em Jaguarão, Rio Grande do Sul, conta com 42 anos de vida e é um servidor público. Seu pai era habilidoso na confecção de selas e, a partir desse legado, ele próprio mergulhou nesse ofício. No entanto, seu ingresso nesse caminho simbólico ocorreu devido a um evento marcante: durante os momentos finais de seu avô, ele compartilhou uma revelação significativa. Nesse momento de despedida, seu avô destacou a importância de cada peão saber confeccionar suas próprias cordas. Esse momento de profunda conexão e ensinamento deixou uma impressão duradoura em V.S., que sentiu um chamado para explorar a transformação do couro cru em arte. Essa experiência não apenas impactou suas escolhas de vida, mas também o motivou a buscar constantemente conhecimento sobre o artesanato relacionado ao couro.
[17] C.C., guasqueiro nascido em Jaguarão, possui a respeitável idade de 77 anos. Desde os primeiros momentos de sua existência, ele esteve imerso no mundo da lida campeira, seguindo os passos de seu pai e avô, que também eram peões. Desde sua infância, sua jornada foi caracterizada por trabalhos rurais, e ao longo dos anos, essa tradição se manteve. À medida que o tempo avançava, uma semente de interesse começou a brotar em C.C. Essa semente estava relacionada à vontade de criar suas próprias ferramentas de trabalho. Esse despertar interno o conduziu à prática de confeccionar seus próprios trançados e, com habilidade e dedicação, ele continua trilhando esse caminho até hoje. A história de C.C. é um testemunho vivo da profundidade das tradições familiares e da paixão que pode evoluir em um ofício habilidoso e único.
[18] A partir del siglo VIII los árabes introdujeron en España el trabajo artistico del cuero. En época de Abderramán II los habitantes de Al-Andalus aprendieron a dormir en lechos de cuero y a comer en pequeñas bandejas de cuero [...] el gusto y habilidad de nuestro hombre de campo para trenzar y entretejer tientos, proviene… de dos vertientes muy próximas entre sí: la marinería del antiguo Mediterráneo español y los artesanos árabes o moros, en hilos o tientos, decorando las prendas de finos cueros teñidos (marroquinería) (ASSUNÇÃO apud Betolaza, 2011, p. 36).Disponível em: http://www.unesco.org/new/fileadmin/MULTIMEDIA/FIELD/Montevideo/pdf/CLT-LosDesafiosdelaArtesaniaConoSur.pdf Acesso em: 04 de janeiro de 2023.
[19] Grupos indígenas, escravos afro-brasileiros, nômades e estrangeiros que passam a executar atividades de peão.
[20] A.S., o experiente guasqueiro, originário de Rio Branco, Uruguai, celebra 82 anos de vida. Sua trajetória sempre foi moldada pelo papel de peão e guasqueiro. Desde tenra idade, ele mergulhou nos ensinamentos de seu pai, absorvendo os intricados caminhos dos tentos e as habilidades da vida rural. Como peão domador, A.S. desenvolveu sua maestria, adquirindo um domínio notável sobre as tarefas que abraçava. A dedicação à vida no campo manteve-se constante até que o momento oportuno chegou. Quando seus filhos alcançaram a idade de iniciar a educação escolar, ele tomou a decisão de abandonar a zona rural, procurando uma vida mais melhor para sua família. No entanto, mesmo com essa mudança, suas raízes na guasqueria permaneceram profundas. A.S. é amplamente reconhecido como um dos principais guasqueiros e domadores da cidade. Sua expertise é uma testemunha vívida da tradição e da destreza que ele cultiva, representando a conexão vital entre as antigas artes e as mudanças modernas ao longo do tempo.
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