Ensayos

Agricultura familiar: crise institucional e mudança na ação pública no Brasil

Diego Neves de Sousa
Embrapa - Pesca e Aquicultura, Brasil

Estudios Rurales. Publicación del Centro de Estudios de la Argentina Rural

Universidad Nacional de Quilmes, Argentina

ISSN: 2250-4001

Periodicidade: Semestral

vol. 12, núm. 25, 2022

estudiosrurales@unq.edu.ar

Recepção: 10 Maio 2021

Aprovação: 01 Fevereiro 2022



Resumo: Este ensaio teórico tem como objetivo entender a atual crise das instituições que lidam com os públicos da agricultura familiar brasileira e a mudança nos referenciais de ação pública. Para isso, utilizou-se de um diálogo com a abordagem de referencial de políticas públicas e tendo como objeto central as políticas brasileiras para agricultura familiar, criadas a partir da década de 1990, e as atuais mudanças na agenda política.

Palavras-chave: Políticas públicas, Desenvolvimento rural, Inclusão produtiva, Pobreza.

Resumen: Este ensayo teórico tiene como objetivo comprender la crisis actual en las instituciones que atienden a los públicos de la agricultura familiar brasileña y el cambio en los puntos de referencia de la acción pública. Para ello, se utilizó un diálogo con el enfoque de referencia de políticas públicas y teniendo como objeto central las políticas brasileñas de agricultura familiar, creadas a partir de la década de 1990, y los cambios actuales en la agenda política.

Palabras clave: Políticas públicas, Desarrollo Rural, Inclusión productiva, Pobreza.

Keywords: Public policies, Rural development, Productive inclusion, Poverty

As mudanças na agenda política são compreendidas a partir de transformações que envolvem os elementos cognitivos e normativos de determinado problema ou de um setor de intervenção em específico (Grisa, 2018). No caso dos agricultores familiares, afinal, quais seriam as consequências ou influências das recentes alterações de ordem política? Quais seriam as próximas políticas públicas a serem implementadas numa possível quarta[1] geração? Como o tema da inclusão produtiva se ajustaria às novas prioridades da agenda pública? Esses são alguns dos questionamentos suscitados pelos mediadores entrevistados na pesquisa conduzida por Sousa (2019), mas para os quais não conseguiram encontrar respostas em face das incertezas que pairam no cenário político brasileiro. Isto motivou a elaboração deste ensaio teórico com o objetivo de entender a atual crise das instituições que lidam com os públicos da agricultura familiar brasileira e a mudança nos referenciais[2] de ação pública.

Os desafios para a agricultura familiar frente ao novo cenário político e econômico tornaram-se ainda maiores com os contingenciamentos dos recursos para as políticas públicas e, a partir do ano de 2016, iniciou-se a extinção de órgãos que tratavam especificamente do tema do desenvolvimento rural e da agricultura familiar, como foi o caso do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Essas mudanças foram ancoradas numa narrativa governamental centrada na ideia da emergência de se realizar ajuste fiscal no país para a retomada da confiança entre os agentes econômicos e a capacidade de investimento.

Seja como for, essas evidências do enfraquecimento do poder político e institucional da agricultura familiar inibem a capacidade de articulação política dos atores (políticos, burocratas e organizações da agricultura familiar) partícipes do processo de desenvolvimento rural e de inclusão produtiva de agricultores familiares. As recentes mudanças demonstram fragilidades das políticas de desenvolvimento rural, fato que contrasta com a trajetória de fortalecimento da agricultura familiar que se instaurou em meados da década de 1990 (Bracagioli & Grisa, 2018). Por mais que as políticas públicas da agricultura familiar estejam sendo contingenciadas, não se tem agravado ainda mais esta situação dada à articulação política de movimentos sociais em busca de seus interesses (Niederle et al., 2019).

O discurso do atual governo de Jair Bolsonaro, presidente desde 2019, é pautado pelo argumento de que a agricultura familiar e a empresarial são o mesmo “negócio”, o que justificaria a existência de um só ministério, neste caso o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), que olharia com igual destaque para todos os produtores rurais brasileiros, independente do seu porte (Leite et al., 2019). Isto reflete em uma mudança no referencial global que foi estabelecido após o impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016. Tal situação configurou-se num rebaixamento da pauta da agricultura familiar na agenda pública. Cita-se, como exemplo, o fato de que não existe mais um foco em inclusão produtiva de agricultores na agenda pública como amplamente incorporada nos anos 2000.

Em um estudo sobre as recentes disputas narrativas que envolvem as políticas públicas da agricultura familiar, Soldera (2017) constatou que está se revivendo uma nova onda de modernização tecnológica no meio rural, no qual se propõe um novo dualismo, não necessariamente entre o mundo da agricultura familiar e do agronegócio, mas, sobretudo entre os agricultores produtivos e os improdutivos (ou seja, aqueles considerados pobres).

Outras constatações sobre as políticas públicas para a agricultura familiar foram que as convencionais, como as de crédito rural, continuaram a apoiar os agricultores mais produtivos e consolidados. Isto revela que essa tipologia de agricultor não sofreu mudanças tão substanciais quanto os agricultores ditos “pobres” e “não produtivos” (Soldera, 2017; Sousa, 2019).

Numa avaliação recente sobre o contexto das políticas públicas da agricultura familiar no país, Grisa (2018) considera que essas mudanças proporcionam o retorno do neoliberalismo como referencial global orientador da agenda pública brasileira. A autora explica que essas alterações sugerem que a abordagem do desenvolvimento rural e territorial cedeu lugar ao desenvolvimento agrícola com o discurso do Estado em torno da agricultura pautada na produtividade e na viabilidade econômica. Em virtude de tais mudanças que têm ocorrido no referencial global, são necessários ajustes também nas políticas setoriais, de modo que o Estado volte a articular desregulamentações e sanções que tornam a atividade agrícola mais atrativa do ponto de vista do capital.

Dessa forma, a emergência de um novo referencial setorial para a agricultura familiar em voga evidencia que os temas da fome e da pobreza retomam sua importância e destaque na atual agenda pública nacional (FAO, 2016; Bracagioli & Grisa, 2018; Graziano Da Silva, 2019).

Esta tendência já se apontava nos anos anteriores no cenário internacional. Este fato foi acompanhado pela expansão de programas e políticas públicas de combate à fome e à pobreza por diferentes organismos e agências de cooperação, como o Banco Mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU) e sua agência para Alimentação e Agricultura (FAO). Os eventos decisivos que proporcionaram capilaridade e significância dessas questões emergentes iniciaram na Conferência de Copenhagen sobre Desenvolvimento Social, em 1995; seguida pela Cúpula Mundial da Alimentação em Roma, em 1996; a Aliança Mundial das Cidades contra a Pobreza, em 1997; e a Declaração das Metas do Milênio, em 2000 (Belik et al., 2001; Leite, 2013). Com efeito, esses temas emergentes se tornam ainda mais evidentes quando a FAO os reiteram no novo planejamento estratégico da instituição para enfrentar os dilemas contemporâneos que afetam a dinâmica socioeconômica mundial (FAO, 2016).

É importante salientar, ainda, que as duas primeiras metas que compõem os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela ONU, em 2015, estão relacionados a erradicação da fome e da pobreza. Essas temáticas constituem a base de toda a agenda mundial para a construção e implementação de políticas públicas que visam guiar a humanidade até 2030. Para Graziano da Silva (2019), esses temas estão separados em dois ODS porque oferecem mais especificidades a cada um deles, mas devem ser considerados complementares e precisam ser articulados de forma conjunta a fim de resultar em uma agenda mais robusta e eficiente.

A imbricação desses dois temas remete a ideia de que a fome é decorrente da falta de renda (entendida aqui por pobreza) de significativa parte da população para que se alimente adequadamente, pois a mesma é o reflexo das desigualdades sociais presente no país (Henriques, 2000). Nota-se, então, pelo discurso político, que a manutenção da pobreza e de níveis agudos de fome é “o calcanhar de Aquiles para o ‘sucesso’ do ‘modelo de desenvolvimento equilibrado’” das economias mundiais (Belik et al., 2001, p.123).

No caso brasileiro, a crise econômica e política que o país passou a vivenciar desde o ano de 2015 resultou em um rápido crescimento da pobreza e, sobretudo, da extrema pobreza. Dados do IBGE (2020) apontam que de 2014 para 2019 a extrema pobreza aumentou de 5,2 para 13,7 milhões de pessoas. Outras projeções apontam que este indicador ainda irá aumentar decorrente dos efeitos causados pela pandemia da Covid-19.

Não obstante, a população rural parece estar sendo proporcionalmente menos afetada que a urbana. Enquanto as taxas de crescimento da pobreza e da pobreza extrema da população urbana entre 2013 e 2017 foram de 25,5% e 116,4%, na população rural elas corresponderam a -0,08% e 57,9%, respectivamente (IBGE, 2018). Esta relativa inércia da pobreza nas áreas rurais revela que o fenômeno é mais difícil de ser enfrentado, sobretudo em virtude da dificuldade das políticas para identificar e chegar até os pobres rurais (Aquino & Nascimento, 2019). Entretanto, também demonstra que, uma vez que as políticas chegam, parecem ter efeitos mais duradouros ao longo do tempo, o que pode estar associado ao tipo de ação pública destinada às áreas rurais e, em particular, aos agricultores familiares. Por isso da importância de buscar estratégias institucionais para o fortalecimento dos diferentes grupos da agricultura familiar e de suas organizações coletivas.

A redução das desigualdades sociais (e consequentemente da pobreza e da fome) não é uma decorrência natural do crescimento econômico, mas sim do interesse do Estado ao redefinir prioridades, inovar na gestão pública e sintonizar a política econômica junto à social, como ocorrido com algumas experiências de políticas brasileiras (FAO, 2016). Com um conjunto de políticas públicas voltadas ao combate à fome e a pobreza, no período de 2003 a 2010, o Brasil passou a ser referência para os países em desenvolvimento, sobretudo os da América Latina, Caribe e África, exportando algumas dessas políticas, principalmente o Bolsa Família e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), para serem adaptadas a realidade deles através de uma agenda de intercâmbio e cooperação Sul-Sul mediada pela parceria com a FAO. O entendimento é que as políticas brasileiras foram ao encontro dos interesses dos órgãos internacionais, ao recomendarem que as ações estivessem atreladas ao favorecimento do crescimento econômico, melhoramento da distribuição de renda e da riqueza e no desenvolvimento pautado por questões atinentes à integração social, política e cidadã (Bonnal, 2013). Por conseguinte, as narrativas sobre o êxito de políticas públicas brasileiras estão fundamentadas pelo volume de recursos e de beneficiários atendidos e na expressiva melhoria dos indicadores de pobreza, de renda e de desigualdades sociais no meio rural (Leite, 2013), uma vez que para a FAO (2016) elas representam um sólido e produtivo aparato de inclusão e proteção social.

De acordo com Maluf (2013), os desafios a médio e longo prazos demandam, cada vez mais, políticas públicas inclusivas. A viabilização destas não se efetiva no campo político se não houver planejamento, disponibilização de recursos e enfrentamento das condições de adversidade para sua devida implementação, além de tratar de aspectos de reconhecimento das peculiaridades da agricultura familiar que vão além da questão econômica. Não obstante, paradoxalmente, o retorno dos temas da fome e pobreza na agenda pública atual não tem sido acompanhado, no Brasil, por discussões sobre novas políticas e estratégias de inclusão produtiva. Pelo contrário, o que se viu com a mudança no referencial global da ação governamental foi a retirada da inclusão produtiva de agricultores familiares do centro da agenda política.

Para Grisa (2018), esse ajuste no referencial setorial repercute na compreensão do lugar da agricultura familiar no desenvolvimento do rural brasileiro, no tratamento que é dado a sua diversidade (e especificidade) e na concepção de desenvolvimento rural predominante no país. Isto quer dizer que novas ideias e novas interpretações estão em processo de emergência no campo do desenvolvimento rural e da agricultura familiar. As alterações e as rupturas institucionais que ocorreram recentemente no âmbito da agricultura familiar sinalizam para uma mudança de foco da ação do Estado neste segmento, colocando em risco a capacidade de reprodução social de inúmeras famílias rurais e, com isso, podendo agravar ainda mais os problemas sociais no campo, como é o caso do aumento da extrema pobreza. Assim, pode ser retomada a ocultação dos problemas gerados pela modernização da agricultura e, consequentemente, os processos de exclusão de outrora.

Em 2020, a crise mundial decorrente do surto da Covid-19 não tem precedente e influencia o funcionamento de praticamente todos os setores da economia. Embora tenham-se direcionado inúmeros esforços no intuito de entender e minimizar os impactos causados pela supracitada pandemia, por ora prevalecem mais incógnitas do que respostas aos inúmeros problemas decorrentes desta.

O provimento da sociedade, sobretudo, a aquisição de suprimentos básicos com vistas ao incentivo do isolamento social, bem como a intensificação das práticas de higienização passam a fazer parte das orientações advindas das agências de saúde e do poder público no intuito de minimizar a proliferação do vírus. Com isso, o sistema agroalimentar precisa se reinventar e desenvolver alternativas viáveis para se manter em meio à crise.

Neste sentido, os agricultores familiares e seus empreendimentos coletivos tornam-se importantes atores para manter o adequado abastecimento alimentar junto à população. A destinação dos recursos por parte do Estado está sendo, neste momento, primordialmente para a saúde. Contudo, as ações voltadas para os agricultores familiares, esperadas nesse momento de crise da Covid-19, não deve menosprezar os empreendimentos da agricultura familiar que sobrevivem do comércio local e que, por sua vez, contribuem para a dinamização da economia do município de origem. Isto é crucial para que os efeitos negativos na produção agrícola e agropecuária sejam minimizados frente à possibilidade de instabilidade na disponibilização de alimentos e também em repercussão direta na segurança alimentar da população em situação de vulnerabilidade.

Portanto, infere-se deste ensaio teórico que as consequências da desconstrução das políticas para a agricultura familiar e os efeitos causados pela pandemia da Covid-19 indicam que o meio rural brasileiro vem passando por significativas transformações e que isto pode ofuscar a trajetória de reconhecimento dos diferentes segmentos da agricultura familiar e de direitos conquistados desde a década de 1990 e a permanência da temática inclusão produtiva na agenda pública nacional.

Referências

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Notas

1 Grisa & Schneider (2014) classificaram as políticas públicas para a agricultura familiar em três gerações de acordo com os diferentes “referenciais” de ação pública, sendo elas: 1ª geração – foco nas políticas agrícolas e agrárias, 2ª geração – foco nas políticas sociais e 3ª geração – foco nas políticas de construção de mercados para a promoção da segurança alimentar e a sustentabilidade ambiental.
2 Os referenciais de políticas públicas baseados no contexto das ideias, buscam compreendê-las a partir das mudanças decorrentes da sociedade e nas formas de representá-las num determinado período e contexto frente ao problema a ser solucionado (dimensão cognitiva). O quadro de referência para uma política pública passa a ser entendido por meio de dois elementos: o setorial e o global. A formulação de políticas públicas consiste em construir uma representação social ou imagem da realidade sobre a qual se pretende realizar determinada intervenção. Isso indica que a referência que os atores sociais construíram, pauta-se sobre a interpretação do problema (dimensão cognitiva), ao confrontar-se suas soluções e propostas de ação pública (dimensões normativa e instrumental). Assim, essa visão de mundo torna-se a “referência” para tal política pública (Grisa, 2018; Sousa, 2019). Mais informações sobre a abordagem de referencial de políticas públicas ver Jobert & Muller (1987).
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