Entrevistas

Caminhos metódicos do posicionamento do cientista: pensando a realidade agraria latinoamericana. Entrevista ao Dr. Ariovaldo Umbelino de Oliveira

Methodical ways of the positioning of the scientist: thinking the latin american agrarian reality. Interview with Dr. Ariovaldo Umbelino de Oliveira

Caminos metódicos del posicionamiento del cientista: pensando la realidad agraria latinoamericana. Entrevista al Dr. Ariovaldo Umbelino de Oliveira

Silvina Macarena Silva Bertolotto
Universidad Nacional de Córdoba, Argentina
Dimas Moraes Peixinho
Universidade Federal de Jataí , Brasil

Estudios Rurales. Publicación del Centro de Estudios de la Argentina Rural

Universidad Nacional de Quilmes, Argentina

ISSN: 2250-4001

Periodicidade: Semestral

vol. 12, núm. 25, 2022

estudiosrurales@unq.edu.ar

Recepção: 13 Outubro 2021

Aprovação: 16 Dezembro 2021



Apresentação

Data e lugar da entrevista: outubro 2021, Jesús Maria (Pcia. de Córdoba), Jataí (Estado de Goiás), São Paulo.

O entrevistado: Dr. Ariovaldo Umbelino de Oliveira

Graduado em Geografia pela Universidade de São Paulo (1970) e doutor em Geografia outorgado pela mesma instituição (1979). Possou livre-docência em Geografia pela FFLCH – USP (1997). É professor titular de Geografia Agrária pela FFLCH – USP (1998) e pesquisador nível 1A- CNPQ, Pesquisador Visitante Nacional Sênior – CAPES e Professor Sênior – USP. Ele é o geografo que mais orientou dissertações de teses em geografia na pós-graduação brasileira. É autor dos livros: “Agricultura camponesa no Brasil” (1991), “A geografia das lutas no campo” (1996), “Modo capitalista de produção, agricultura e reforma agrária" (2007), “A mundialização da agricultura brasileira” (2016), “Crítica ao Estado isolado de Von Thünen. Contribuição para o estudo da geografia agrária" (2016), “A fronteira amazônica mato-grossense: grilagem, corrupção e violência” (2016), “Terras de estrangeiros no Brasil” (2018), “A grilagem de terras na formação territorial brasileira”, entre outros.

E-mail: arioliv@usp.br

http://lattes.cnpq.br/1796886641440781

Os entrevistadores:

Silvina Macarena Silva Bertolotto

Graduada em Geografia pela Universidade Nacional de Córdoba. Membro do Comité Editorial da Revista Latinoamericana de Estudiantes de Geografía (RELEG) e membro do grupo de pesquisa "Internacionalización de la educación superior, clases sociales y movilidades en y desde la UNC" (CIFFyH- UNC).

E-mail: silvinamsbertolotto@mi.unc.edu.ar

https://orcid.org/0000-0003-1983-2037

Dr. Dimas Moraes Peixinho

Graduado em Geografia pela Universidade Federal de Mato Grosso (1991), mestre em Geografia pela Universidade de São Paulo (1998) e doutor em Geografia pela Universidade Federal de Rio de Janeiro (2006). É professor adjunto IV da Universidade Federal de Jataí (UFJ).

E-mail: dimas_peixinho@ufg.br

CV: http://lattes.cnpq.br/8010725751887986

Resumo

Na presente entrevista fazemos um percurso pela ampla trajetória na pesquisa da geografia agrária do entrevistado, Dr. Ariovaldo Umbelino de Oliveira, onde fala-se sobre o posicionamento do pesquisador frente a realidade social e as questões teórico-metódicas na hora de organizar uma pesquisa. Procura-se também compreender a situação atual latino-americana, e mais especificamente a do Brasil, em relação à luta camponesa e a demarcação de terras dos povos indígenas e quilombolas.

Silvina: Você poderia contar em que pesquisas tem trabalhado nesses últimos anos?

Ariovaldo: Tenho trabalhado em três temas: grilhagem, violência e conflito e formação da propriedade privada da terra capitalista aqui no Brasil, esses tres temas tem sido os temas que tem comtemplado nas minhas pesquisas, e a orientação de pós-graduação que faço em São Paulo, em Jataí, e, no Acre.

Silvina: Qual é o posicionamento, envolvimento e o compromisso que, ao seu parecer, deveria ter um pesquisador que trabalha com a realidade social?

Ariovaldo: Um pesquisador que trabalha com a realidade social, deve ter uma sensibilidade para com os problemas sociais e econômicos que a sociedade vive, e na análise desses problemas deve tirar os resultados mais imediatos que devem girar entorno, no caso brasileiro, desses três problemas que coloquei anteriormente. No caso mundial, para cada realidade deve se pensar nos problemas que mais afetam. Penso eu que, na Argentina, o problema esteja ligado a dois processos: o primeiro, o bloqueio que foi feito historicamente para com as classes tradicionais da Argentina e que foi feito a partir de uma aliança entre a burguesia e o proletariado, e que deixaram um pouco de lado os latifundiários argentinos, um pouco só, e que você vai ter processos como, por exemplo: o da soja, que vai mover duas forças aliadas a uma terceira que é a burguesia, o proletariado e em parte dos latifundiários. Mas os latifundiários sempre sendo uma classe, vamos dizer, subalterna na relação entre burguesia e proletariado, e é o contrário no Brasil em que a hegemonia está na mão dos latifundiários, eles movem toda engrenagem enquanto que a burguesia ficou mais no comércio e no consumo dos produtos oriundos da agricultura. Dependendo da realidade em que se estuda, se vê a composição das classes sociais muito mais diferentes, e na Argentina, a participação do campesinato se faz também muito timidamente, ao contrário do Brasil que se faz fortemente em luta e tudo mais. Então tem essas diferenças que são importantes. Se nós comparamos com Uruguai, tem uma participação expressiva do campesinato na agricultura, então você tem realidades diferentes no sul da América que levam a que o país componha um processo revolucionário diferente um do outro, nesses três casos de Argentina, Uruguai e Brasil.

Silvina: Como organiza a questão teórica-metódica na hora de começar uma pesquisa na área de geografia agrária?

Ariovaldo: A questão teórica e metódica é delicada porque eu, por exemplo, sou zeloso em relação à teoria e ao método na Geografia. Tendo a seguir o caminho do materialismo dialético de um lado, como método e materialismo histórico como teoria, e no materialismo dialético tento articular as composições que vão interessar à análise de qualquer trabalho numa linha ditada historicamente pelo materialismo. Se está hoje numa fase do monopólio quase expressivo que ocorre no mundo, um monopólio que já está chegando em alguns setores a uma empresa tomar conta do comércio mundial, então penso que, essa postura teórica incursiona com força a uma opção metódica que interessa ao materialismo dialético numa concepção bastante avançada, já que ele trabalha fundamentalmente com a visão de que há uma postura metódica dialética que comanda todo processo metódico de análise ao lado de uma análise materialista dialética que incursiona nos avanços teóricos que interessam a qualquer análise.

Silvina: Pensa que a realidade brasileira pode ser explicada a partir da compreensão da questão agrária no país? Como podemos partir da questão agrária para compreender a totalidade social de um país?

Ariovaldo: A totalidade de um país só pode ser compreendida a partir das diferentes interpretações e das diferentes conclusões que se pode chegar de uma análise metódica e teórica razoável. Por exemplo: procuro desenvolver meu trabalho compreendendo a sociedade brasileira na sua totalidade. Analiso apenas a questão agrária, que tem uma conotação de uma postura que interessa a uma realidade brasileira de que ela é composta por uma aliança de classes, em que os latifundiários se aliaram com a burguesia e excluíram dessa análise o campesinato por duas, ou três razões fundamentais. Que envolveu a luta dos camponeses com as forças armadas brasileiras e dessas lutas geraram condições para que não houvesse, por parte dos camponeses brasileiros. Uma oposição de classe e ao contrário, a única tolerância que essa aliança latifundiária-burguesia permitiu foi uma certa aliança com o setor urbano do proletariado. Essa aliança latifundiário-burguesia é parte do proletariado urbano e que tem garantido uma possibilidade de participação de alguns estudos ou de uma parte da sociedade em desenvolvimento, deixando de lado a classe camponesa, por conta desses conflitos com os militares. Haja visto agora, exatamente nesse momento, que nós estamos vivendo a exclusão completa do campesinato de um lugar para participação política do Brasil. É importante dizer que embora tenha essa posição, aqui no Brasil o campesinato tem mostrado sua força porque ele fez no ano passado, em 2020, 1.584 conflitos de terra, alcançando um índice como nunca havia alcançado na luta de direitos no Brasil. Então, tem a curva do aumento dos conflitos camponeses no Brasil tem crescido muito, e há esse pacto existente no Brasil entre forças armadas e outras classes como os latifundiários e a burguesia principalmente dos meios de comunicação de massas, não tem permitido que esses meios de comunicação veiculam de forma como tem acontecido os conflitos no campo. Fica parecendo que não tem conflito nenhum e ao mesmo tempo, está-se no período de maior conflito na história do Brasil recente.

Silvina: Como você pensa que a universidade pode contribuir na defesa das terras dos povos indígenas na Amazônia e na visibilização/denúncia do desmatamento?

Ariovaldo: Agora introduz-se um outro elemento que faz parte da grande sociedade brasileira que são os povos indígenas. Os povos indígenas, você sabe muito bem, Brasil tem os quatro setores da origem dos povos indígenas (linguisticamente falando) como os Tupi, os A’uwe Xavante e os outros dois que tem mais na Amazônia (os Karib e os Aruak), que são grupos indígenas que muitas vezes não tem interação entre eles. E, no entanto, esses grupos indígenas hoje estão defendendo as suas posições que marcam a sua relevância no processo geral do conjunto dos povos indígenas da sociedade brasileira, e esses povos indígenas, pelas conquistas que tiveram na Constituição de 1988, eles têm conseguido se impor e demarcar suas terras até um certo grau. Acontece que, nesse último governo de Bolsonaro, ele insiste em dizer que não vai cumprir os requisitos da demarcação e dar continuidade à demarcação das terras indígenas e esses povos estão em movimento para acelerar essa demarcação. O que se vê hoje é que uma parte da sociedade brasileira não concorda com essa posição prescrita na Constituição de 88 e ela tem feito valer seus esforços no sentido de bloquear a demarcação de terras indígenas no Brasil. É claro que esperasse que, a partir do ano de 2023, com a vitória do Lula na campanha da presidência da República e a retirada dos militares aposentados do governo brasileiro, os povos indígenas tenham a possibilidade de ver demarcadas as suas terras. E assim, coloquem um ponto final nessa luta inglória entre os povos indígenas e uma parte dos brasileiros, que é só uma parte que está brigando, que são os latifundiários brasileiros e que insistem em colocar o tema da questão indígena em 1988. Quer dizer só as terras reivindicadas até 88 poderiam ser demarcadas, mas sabe-se que o Brasil tem povos indígenas ainda que não tem contato nenhum com a população. No Acre tem povos indígenas que nunca tiveram contato com o branco, então botar um marco histórico em 1988 é uma brincadeira de mau gosto que os latifundiários brasileiros têm insistido e tem alimentado porque os militares seguem essa linha da aristocracia brasileira.

Dimas: Queria propor antes de dar continuidade, não sei se vai quebrar o raciocínio, como você interpreta/observa a questão agrária nos países latino-americanos? A luta camponesa se diferenciou nesses países? Eles adotaram estratégias diferentes? Você já falou um pouco da questão de Brasil, Argentina e Uruguai, mas talvez a gente poderia explorar um pouco mais como é que você vê a organização dos camponeses nos países.

Ariovaldo: A questão camponesa ela é posta nos países latino-americanos bem diferente, no caso de Chile tem uma participação expressiva dos camponeses. Na Bolívia também é expressiva ao ponto de hoje estarem retomando o controle do país. No Peru também uma participação expressiva esperasse que, agora finalmente Peru consiga demarcar as terras indígenas também fortemente. E o Equador, na Colômbia, na Venezuela eles tem uma participação. Na Colômbia, inclusive, alimentando uma aliança com a guerrilha que fazem da luta desses povos adotarem uma posição muito expressiva. Também, nos países da América Central, tem a participação significativa dos povos indígenas na Nicarágua, e em outros países em que se acentuaram muitos conflitos e desenvolveram estratégias diferentes de um país para outros. E combinam com o México em que os camponeses mexicanos têm uma forte tendência indígena ao ponto de viverem um certo fracasso da demarcação dessas terras e hoje alimentam uma retomada da ação desses povos que começou no sul do México e que agora vai em direção ao centro do país. Então todos os países latino-americanos têm conflitos diferentes de terra, por exemplo: a Colômbia tem uma situação muito parecida com Brasil, exceto em relação a guerrilha, um país comandado por as forças latifundiárias também violentamente concentrado no poder. E, o Paraguai tem uma situação semelhante à do Brasil e da Colômbia, já que o controle se faz pela aristocracia, ou seja, pelos latifundiários. Então essa questão que varia um pouco, então tem alianças dos latifundiários com a burguesia no Brasil, no Paraguai e na Colômbia, e, tem uma ação, até certo ponto independente dos camponeses nos demais países da América Latina com algumas exceções como o caso da Argentina, em que há uma certa presença dos latifundiários e situações da Chile, da Bolívia que são países que têm uma participação intensa dos camponeses indígenas nesses países.

Silvina: Você considera que a pandemia do COVID-19 atingiu a população urbana e a população camponesa da mesma maneira?

Ariovaldo: A COVID-19, ela atingiu inicialmente a burguesia e os latifundiários, mas os latifundiários de forma diferente porque aqui no Brasil eles moram já todos na cidade, e, se confundem de certo modo com a burguesia. Então, aqui no Brasil a COVID atingiu primeiro esse setor, que tem uma parte expressiva dessa população de origem latifundiária e da burguesia já residindo fora do Brasil, residindo significativamente nos Estados Unidos, tem cerca de 480.000 brasileiros nos Estados Unidos hoje, e residindo em países da Europa, das mais diferentes nacionalidades. Tem hoje uma parte expressiva da burguesia e dos latifundiários morando fora do Brasil, e, tem aqui seus sistemas de manutenção da estrutura produtiva do país e o controle dessa estrutura produtiva, então, por conta disso a COVID-19 atingiu primeiro esse setor que viajava muito. A pandemia atingiu primeiro esse setor e por conseguinte, foi se estendendo na primeira crise de 2020 ela pegou fundamentalmente esse setor e a parte de idade mais avançada da população dessas duas classes (dos latifundiários e da burguesia). Depois tem uma queda e a curva sobe novamente, esse ano, atingiu os picos mais altos e aí, é que pega mesmo de cheio os trabalhadores do Brasil. Nesse intermédio tem um número de mortes pequeno mais expressivo na sociedade indígena, por exemplo, em que morreu uma parte significativa dos índios principalmente no norte do país. E depois quando se desenvolve plenamente esse ano ela pega indistintamente todas as classes sociais do Brasil, e, mais fortemente, a classe trabalhadora que vai sentir na pele os efeitos mais dramáticos da COVID-19.

Silvina: O senhor pensa que a pandemia favoreceu a concentração de terras por parte dos latifundiários?

Ariovaldo: No Brasil não, praticamente não tem efeito porque no Brasil a concentração de terra nas mãos latifundiárias é absurdamente expressiva, se pegar o ano de 2003 como referência, que tem governo Lula até o censo do IBGE[1] de 2017, e mais, tem um levantamento do INPA[2] de terras. O levantamento de 2003 a 2010 teve um aumento de cerca de 60 milhões de hectares ampliado nas terras dos latifundiários que já tinham concentração excessiva, tem mais de 60 milhões e de 2010 para 2014 e depois 2018 há uma concentração absurda que se fala em mais de 200 milhões de hectares de terras concentradas entre aqueles que tem mais de 2500 hectares. No Brasil não tem tido limite para concentração e agora muito mais, não diria que nesse período da COVID ela tenha sido mais expressiva ou menos expressiva porque nesse período é bom fixar bem que no Brasil houve um aumento das exportações. Assim como na Argentina, no Uruguai, no Paraguai e em parte da Bolívia, são os países que cultivam soja e, que mantiveram as exportações para China, sobretudo, de forma expressiva até esse ano. Desse ano para frente não se sabe porque a China vai diminuir seus níveis de desenvolvimento mais expressivos. A China chegou a crescer 14% há cinco, seis anos atrás, e, agora apresenta índices em torno de 6-7% de crescimento. Ainda continua crescendo, mas muito menos forte, e, isso significa dizer que, em tese, não vai necessitar de maior consumo de soja. Então, entrar-se-á em um período onde o Brasil diminuirá um pouco os ritmos de exportação de soja para China, e com isso abre a possibilidade que não haja mais aumento ainda da área cultivada de soja no Brasil. O exemplo serve para Argentina, e, na mesma proporção para Uruguai, para Paraguai e para Bolívia em menor proporção.

Silvina: O novo cenário da virtualidade e o maior uso das TICs favorecidos pelas condições de isolamento por causa da pandemia, pensa que podem ser novas ferramentas que propiciaram a expansão e o desenvolvimento da agricultura capitalista?

Ariovaldo: Venho de uma época histórica que é difícil poder trabalhar com esses cenários pós-modernos de desenvolvimentos tecnológicos, então vou te responder, mas dentro dos limites da minha interpretação e da minha capacidade de absorver essas novas tecnologias, penso que não vai haver grandes influências. Penso que desenvolvimento é importante para a agricultura, por exemplo no caso brasileiro no setor de cana de açúcar onde mais vê a presença da tecnologia e a sua influência forte. Mas no demais cultivos, a soja apresenta um pouco dessa tecnologia, mas não na proporção que se poderia imaginar de um cultivo totalmente tecnificados. Só tem esses dois setores com alta tecnologia no Brasil (cana-de-açúcar e madeira), os demais não incorporaram tanta tecnologia, o que faria com que o Brasil ingressasse numa era tecnológica para agricultura. Penso assim, porque viajo por terra boa parte da minha vida e não vejo todo esse cenário tecnológico que está presente na indústria. Não estou negando o avanço tecnológico, na indústria ele é total e absoluto e agora atinge o comercio, que a gente não sabe ainda se vai se manter na pos-pandemia, porque o comercio brasileiro ele avançou muito no período desses dois anos de pandemia. Então, penso que o avanço tecnológico é mais para indústria, mas vai atingir alguns setores da agricultura sem sombra de dúvida, cana de açúcar e soja são os dois que estão na ponta.

Silvina: De que maneira o senhor acha que a pandemia influiu no modo de vida dos povos indígenas?

Ariovaldo: Nos povos indígenas não vejo grande modificação, vejo maior modificação no consumo, hoje tem setores da população que estão decisivamente alterando os modos de consumo. Aí vejo uma mudança expressiva, mas nos povos indígenas não vejo grandes modificações, mesmo porque os povos indígenas têm uma postura no Brasil completamente diferente, primeiro dos demais brasileiros, quer trabalhadores, quer camponeses, quer burguesia, quer latifundiários e em relação aos povos indígenas não vejo grandes movimentos no sentido de uma alteração de seu tipo de vida de sua relação estruturante como sociedade no Brasil.

Dimas: Dentro das suas analises você entende que a gente está vivendo um período de monopolização, dentro da mundialização da agricultura você desenvolve bem isso demonstrando como é que vários setores, mas esses também ligados a produção agrícola estão se constituindo nesses monopólios, eu gostaria que você falasse um pouco disso e se inclusive você pudesse dar exemplo dessas aquisições, por exemplo dessas empresas inclusive argentinas por empresas brasileiras formando um grão monopólio em alguns setores que você mostra nessa análise que você faz na mundialização da agricultura.

Ariovaldo: Bem, esse ponto é preciso antes de falar dele que a gente faça um pequeno voo histórico. Vejam você tinha no Brasil um processo de avanço do monopólio desde o começo do século passado, ao mesmo tempo que se vai constituindo os monopólios nos Estados Unidos, na própria Europa você tem processos de transformação intensos no Brasil. Por exemplo, há uma quebra na cultura do açúcar feita pelas empresas europeias que controlavam apenas a produção industrial do açúcar no começo do século passado, então eles abandonaram, deixaram de praticar essa produção do açúcar e que vai passando para grupos nacionais. Primeiro no nordeste para grupos que representavam de certo modo a aristocracia, os proprietários de terra no nordeste, ao contrário aqui no Estado de São Paulo há um ingresso dos migrantes que vieram para trabalhar na fazenda de café e que aos poucos em função de traços familiares, por exemplo, são famílias com um número de filhos muito grande, e que conseguem juntar algum dinheiro e vão comprando pequenas partes de fazendas que eram loteadas na medida da expansão do café aqui em são Paulo e com isso vão conseguindo acumular algum dinheiro inicialmente e depois capital mesmo. Essa economia de capital faz com que eles acabem comprando grandes velhas usinas de açúcar e vão se tornar os grandes usineiros do setor. Vejam esses usineiros eles foram mantendo o traço familiar, na composição dos grupos tanto é que a gente fala os Ometto, os Zanini, que são em geral descendentes de italianos que vão ser os grandes proprietários de cana de açúcar até a década de 90. Eles vão fazer esse processo de acumulação e depois isso ficam fortemente ancorado no mercado interno como fornecedor de açúcar para a população que crescia aqui no sudeste brasileira e, na região sul. Isso faz com o que no setor do açúcar haja uma guinada dos anos 90 para a primeira década do século 21 que vai ser a transformação do Estado de São Paulo e do norte de Paraná, Mato Grosso do Sul, Triângulo Mineiro e depois Goiás, as grandes áreas produtoras de cana neste momento, nestes anos 20 do século 21. E neste processo se faz por um fenômeno de concentração, invés de cultura da cana se fazendo como se imaginava no passado ela tem uma interveniência no ano de 2004, 2005, 2006 no Brasil porque o governo Lula vai propor pro Brasil ser um grande exportador de cana de açúcar e isso estimula grupos internacionais a investirem na produção de cana no Brasil. Eles vêm para o Brasil, grandes grupos como Bunge, todos os grupos praticamente vieram e investiram na cana e teve algumas alianças interessantes como a do Ometto com a Shell que tem a previsão ainda de em 2025 de ser tudo vendido para a Shell. É a previsão, hoje tem 51% é do os Ometto e a previsão que a maioria passe a Shell, mas a presidência da Shell já manifestou o desinteresse de fazer essa transação, eles aceitam a posição como está hoje, da maioria não assumir, aí tem várias explicações umas interessa na relação Shell-Ometto. E outras que vão ao papel que as empresas estrangeiras tiveram com a cultura de cana e consequentemente falando do açúcar, o que se assiste é uma saída gradativa do capital estrangeiro, por exemplo a Bunge mesmo está com todo seu parque industrial à venta, o problema é que não encontra comprador. E os outros setores não houve um avanço no capital estrangeiro na cultura da cana o único setor que conheceu um aumento até o 2012, fora desse, tem a realidade que é marcada sobremaneira pela produção de açúcar. Você tem cerca de 20% da indústria nas mãos de estrangeiros e 80% nas mãos de brasileiros, tem esse porem aí que aconteceu nesse período com a açúcar, ao passo que na criação de gado de corte de bovino, aconteceu o contrário houve um avanço de empresas brasileiras que dominaram e que fizeram um domínio aqui no Brasil. Em termos que ao mesmo tempo que passaram a comprar nos Estados Unidos, na Australia, na Itália expressivas industrias de carne bovina e hoje pode se dizer que no parque de carne bovina há um monopólio em primeiro lugar da JBS, e em segundo lugar da Marfrig, e em terceiro da Minerva. São esses tres setores que tem dominado esse mercado e eles fizeram diferente do açúcar, então ao invés da multinacional vir para cá investir, eles fizeram o contrário foram para Estados Unidos, foram para Australia e investiram aqui, no Uruguai, na Argentina e compraram várias empresas internacionais, se mundializaram. Ou seja, juntaram os capitais, mas juntaram e continuam participando então não é uma compra de uma empresa por outra, é uma associação de capitais que marcam a produção de carnes bovina no Brasil e na América Latina, Australia, Estados Unidos, etc. Ao passo que no setor das aves e os suínos aconteceu um processo inverso as indústrias brasileiras que eram fortes industrias nesse setor desenvolveram no sul do Brasil um processo de aliança entre camponeses e industriais, e em Goiás, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso já se faz uma aliança com os latifundiários. São os blocos que tem uma forma de produção distinta uma camponesa e uma capitalista mesmo. Ao passo que a capitalista aqui no Brasil não atinge o mesmo nível de capitalismo que tem nos Estados Unidos, que tem no Canadá no setor de aves e suínos. Lá a concentração é muito mais forte, coisa de 20, 50 pavilhões de 28.000 aves cada pavilhão desses com criação altamente tecnificado. Aqui tem as vezes 8, 10, 12 pavilhões no Mato Grosso e no Goiás, mas é bem menos que o que é no Canadá e nos Estados Unidos. As demais atividades, por exemplo a produção de arroz, vejam o MST tem as maiores áreas de produção de arroz no Rio Grande do Sul que fica tudo no meio, uma mistura maior das experiências no Brasil. Porque? Porque o grande capital não foi para essas áreas produtivas no Brasil, ele preferiu investir na comercialização, então a indústria vai ficar na comercialização e não na produção propriamente dita. Tem que fazer essas mediações no caso brasileiro. No caso do café, por exemplo, você tem um processo de introdução de tecnologia avançada no sul de Minas, mas no norte de Minas é camponês. Rondônia é camponês, não tem esse investimento de capital tão grande, mas no sul de Minas já se tem fazendas altamente tecnificadas com colheitadeiras mecânicas de café, tem alta concentração de tecnologia e tudo mais. Mas se você analisar a produção em si, ainda a produção camponesa de café é maior do que a produção capitalista propriamente dita de café, até porque muitos desses grandes produtores saíram para produzir café selecionado e tudo mais, e, tem um certo monopólio de florescimento de grãos especiais e tudo mais de café, nos demais setores você tem tecnologia incorporada, mas bem menores que outros setores.

Silvina: Você pensa que a situação pós-pandemia propiciaria uma melhor discussão em relação à demarcação das terras dos povos indígenas?

Ariovaldo: Penso que a pandemia aparece no Brasil numa época em que tem um governo de ex-militares que ingressaram no governo brasileiro no período anterior à pandemia, então não dá para fazer qualquer relação entre governo militar, de militares aposentados e pandemia. A coincidência penso que no Brasil vai se dar ao contrário em um possível terceiro governo Lula, ele terá que fazer concessões mais profundas aos povos indígenas com a questão da demarcação das terras e aos povos quilombolas. É bom não esquecer que também tiveram direito à demarcação de suas terras, mas que muito poucas foram demarcadas. Por exemplo: na questão das terras indígenas, o Brasil tinha cinco anos depois de 1988 para demarcar todas as terras indígenas e não demarcou nenhum ou demarcou algumas apenas. Então tem terra indígena para demarcar, tem terra quilombola para demarcar e tem terra camponesa reivindicada para demarcar também. Tem terra camponesa que por direito pertence a esses camponeses porque uma parte delas são terras improdutivas que pela lei, pela Constituição brasileira devem ser desapropriadas e destinadas aos camponeses. Tem essas contradições todas, o que se espera é que um possível terceiro governo Lula abra a mão e ceda mais demarcação dessas terras indígenas, quilombolas e de camponeses. Vejo assim é tudo uma questão de filigranas porque hoje têm aqueles que acreditam que é mais possível ter um golpe militar, voltarmos a enfrentar ao governo militar propriamente dito que caminhar na direção da redemocratização. Não acredito nessa hipótese, mas tem uma corrente que alimenta, acredito mais que se vai ingressar num terceiro governo do Lula e em que esperamos que seja francamente progressista e dê alento a uma parte da sociedade brasileira que não tem tido nenhuma perspectiva até agora de ter avanços na sua aquisição, quer dos camponeses, quer dos quilombolas, quer dos povos indígenas.

Dimas: Queria propor uma última pergunta aqui que seria a seguinte, o Ariovaldo sempre nos fala que a gente tem que pensar para frente, então com esse tempo de pesquisa que você tem, 50 anos de geografia, você certamente acompanhou várias transformações que aconteceram nas sociedades de uma forma geral. Olhando a partir de sua experiência de tudo o que você viu e participou na formação do pensamento geográfico brasileiro e também suas contribuições com outros doutores de outros lugares o que você vê para frente, e o que que um jovem pesquisador (igual à Silvina que está terminando um curso de graduação), o que que as pessoas deveriam se organizar para pensar para essa realidade que possa vir como perspectiva ou que você entende que, a partir dessa realidade atual, a gente tem que organizar enquanto a perspectiva?

Ariovaldo: Vou falar primeiro dos brasileiros, depois eu falo da Silvina e dos argentinos, os brasileiros acho que o ensino universitário do Brasil cresceu muito, muito, a própria Universidade de Jataí é uma criação que veio do governo Lula foi feita no governo do Bolsonaro, mas por circunstâncias apenas. Então tem esse problema que um número muito grande de universidades, e esse crescimento rápido fez com que fosse para as universidades muitos jovens, não posso reclamar, também fui muito jovem para a Universidade de São Paulo. Era eu, depois veio Antônio Carlos Roberto de Moraes, depois veio o Wanderlei... todos tínhamos como objetivo, tínhamos essa perspectiva de consolidar na geografia, a influência do materialismo dialético e do materialismo histórico, e, se quiser uma visão marxiana do pensamento e acho que nós fizemos relativamente... com cabeçada aqui, cabeçada ali nessa parte, mas hoje, olhando para todos esses cerca de 78 (se não me engano) cursos de geografia que tem no Brasil hoje, vejo uma parte significativa não segue esse caminho e consolidou o empirismo lógico na geografia e consolidou muito mais na geografia humana, a fenomenologia. Ou seja, tem-se hoje um número muito maior de correntes do pensamento na geografia humana e temos também os marxistas ou marxianos divididos entre quem está divulgando a constituição do território e quem está divulgando a constituição do espaço. Então, tem-se essa divisão toda no pensamento geográfico e tem uma parte grande que foi resultado dessa corrente em função do aumento do número de vagas nas universidades públicas brasileiras. Isso trouxe para a universidade aqueles que eu digo que “não tem nenhuma corrente de pensamento” e que “seguem o caminho Deus dará” e misturam tudo, áreas com lugares. Esse setor enquanto a geografia tiver uma participação forte desses pesquisadores que não tem preocupação nenhuma teórica nem metódica ter-se-á a nossa disciplina posta a prêmio. Veja que há pouco respeito por parte dos filósofos, com relação aos geógrafos, e esse pouco respeito é consequência dessa mistura total que se faz sem nenhuma preocupação com a “seriedade científica" no Brasil. Vejo assim a situação hoje, então diria que tem várias frentes mais não tenho dúvida nenhuma que a mais expressiva é a da fenomenologia na geografia humana, na física é do empirismo lógico. Mas, na geografia humana também vejo uma influência forte do marxismo tanto do território quanto do espaço. Então é isso, mas tem ainda quase um terço da produção acadêmica da geografia que não segue linha nenhuma que não tem nenhuma preocupação com a seriedade científica na geografia e posso dar exemplos de cursos que são e que tradicionalmente tiveram avanços como foi o caso de Rio Claro, da UNESP de Rio Claro e que hoje esperneia muito para ter pesquisadores de alto gabarito com uma certa seriedade científica, tem o Gilberto que é um professor excelente em Rio Claro, mas você vê um número grande de professores que não tem nenhuma preocupação ou com o método ou com a teoria em geografia. Falo de Rio Claro porque eu comecei minha carreira lá e, por exemplo quando ingressei em 79 lá em Rio Claro, eu encontrei Rio Claro indo na direção do empirismo lógico, mais solidamente essa tendência não se configurou em Rio Claro. Tiveram um período muito em que ingressaram pessoas que não seguiram uma corrente ou outra, ou duas ou três, fizeram mais um jogo da mistura total das correntes e que não leva a nada. Aqui na USP, também tivemos um período ainda fortemente marcado por essa corrente, mas que, felizmente as contratações mais recentes foram eliminando e hoje tem dois ou três professores que ainda seguem essa mistura total, mas tem 40 outros que tem uma definição que é marxista do território, marxista do espaço, empirista lógico interessando, mas a geografia física aqui na USP. Então tem essa mistura agora, mas insisto nessa década, tivesse um terço da geografia do Brasil todo que é uma confusão só porque não segue corrente nenhuma e enquanto tiver essa expressão vai haver dificuldades de os filósofos respeitarem a geografia e acho que um pouco desse desrespeito é por conta dessa divisão muito forte que temos entre empiristas lógicos e os marxistas materialistas de um lado e idealistas do outro na geografia humana mais que na física. Aí entra Argentina ... Argentina já vejo um pouco diferente porque Argentina tem um passado, vou falar do presente, tem atualmente uma forte presença de um marxismo menos radical. Não vejo na Argentina essa divisão essa divisão entre espaço e território tão fortemente posta, então por isso eles estão rapidamente assumindo posições mais avançadas do que a dos brasileiros, então vejo assim a Argentina com mais possibilidades de que tenham condição de dar um salto em direção a uma proposta única de “geografia marxista” mais sólida, não sei para que lado iriam se para o território ou para o espaço, mas estão mais avançados nessa direção, mais próximos a uma saída para a geografia que aqui no Brasil. Não vejo possibilidades que a minha geração vai ver essa passagem, acho que a minha geração não vai ver porque as alianças, o conjunto de posições assumidos por aqueles que vão na direção que eu vou, não são para pactuar uma transição tranquila. Ao mesmo tempo, a posição de Ana Fani, de Amélia, Odette também são radicais, e radicais você sabe que não estão abertos a uma mudança. Vejo assim hoje, mas espero que na Argentina, e só na Argentina porque a geografia do Chile, a geografia do Peru, na Colômbia mesmo é profundamente racional ainda é aquela geografia positivista clássica. Vejo assim, no Uruguai é uma incógnita pode ser que também venha de lá uma posição forte e de esquerda, mas acho mais difícil que na Argentina. Na Argentina eu vejo mais condições para que isso ocorra mais rapidamente. Nesse sentido então, Silvina você estaria com a bola toda nos próximos anos no desenvolvimento da pesquisa em geografia.

Notas

[1] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
[2] Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia.
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