Tesis
MEDIADORES SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS DE INCLUSÃO PRODUTIVA DA AGRICULTURA FAMILIAR NO TOCANTINS: (DES)CONEXÕES ENTRE REFERENCIAIS, IDEIAS E PRÁTICAS
Estudios Rurales. Publicación del Centro de Estudios de la Argentina Rural
Universidad Nacional de Quilmes, Argentina
ISSN: 2250-4001
Periodicidade: Semestral
vol. 11, núm. 22, 2021
Recepção: 08 Janeiro 2021
Aprovação: 21 Abril 2021
Orientador: Paulo Andre Niederle, Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
Data da defesa: 04/12/2019
Banca:
Catia Grisa – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Waldecy Rodrigues – Universidade Federal do Tocantins
Keile Aparecida Beraldo – Universidade Federal do Tocantins
Introdução e o problema de pesquisa
O termo “inclusão produtiva” foi amplamente incorporado na agenda das políticas públicas para a agricultura familiar brasileira desde o começo dos anos 2000. Para além da desarticulação entre as políticas, o principal problema talvez seja o fato de que a noção de inclusão produtiva passou a balizar inúmeras políticas sem que os policy makers se preocupassem com o que realmente ela representa, ou seja, seu significado. Ademais, o fato de elas serem orientadas por diferentes referenciais, força os mediadores a articulá-las e torná-las coerentes para o público beneficiário. Também se verifica essa incógnita no meio acadêmico, onde quase sempre o termo é utilizado de forma vaga e imprecisa. Assim, a coexistência de diferentes interpretações cria distorções na formulação, implementação, execução e mesmo na avaliação de determinada política pública. O que esperar, portanto, dos mediadores sociais que atuam diretamente com os beneficiários das políticas, e que têm que traduzir os referenciais que orientam as mesmas em ações concretas?
O objetivo geral desta tese, vinculada ao Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é analisar se o referencial de inclusão produtiva que orienta as políticas públicas para a agricultura familiar converge com as ideais e práticas desenvolvidas por mediadores sociais que intermedeiam (processo de tradução) o acesso às mesmas por diferentes grupos de agricultores familiares do estado do Tocantins. Dentre os objetivos específicos citam-se:
a) identificar as políticas públicas para a agricultura familiar que são consideradas “de inclusão produtiva” pelos mediadores;
b) identificar e analisar os referenciais de inclusão produtiva que orientam estas políticas;
c) analisar como diferentes concepções de inclusão produtiva se expressam nas ideias e práticas dos mediadores sociais;
d) compreender como os mediadores interpretam, traduzem e adaptam as políticas públicas em face de suas próprias ideias e práticas.
Os dados provêm de pesquisa documental e entrevistas com mediadores que atuam com os diferentes públicos da agricultura familiar. Para identificar os mediadores, recorreu-se à técnica de “seguir os atores” que fazem parte da rede que opera e articula as políticas públicas para a agricultura familiar no estado do Tocantins, localizado na região Norte do Brasil. Para a análise, estes mediadores foram classificados de acordo com o pertencimento a diferentes “mundos sociais” (extensionistas, gestores, pesquisadores, professores e representantes de movimentos sociais). Isto permitiu comparar os referenciais de ação pública de cada grupo.
A pesquisa orientou-se pela abordagem cognitiva de análise de políticas públicas, a qual ofereceu as noções de narrativas (ROE, 1994; RADAELLI, 2006), discursos (SCHMIDT; RADAELLI, 2004) e referenciais (JOBERT; MULLER, 1987). Este aporte teórico focaliza as ideias e as argumentações dos atores sociais para a formulação das políticas públicas, considerando que suas interações resultam na produção de representações sobre os problemas sociais e respostas para os mesmos. Complementarmente, a abordagem da sociologia da tradução (CALLON, 1981, 1986; LATOUR, 2000) foi mobilizada para compreender os processos de tradução entre os diferentes mundos sociais.
Dentre os principais resultados obtidos, postula-se que os “mundos sociais” analisados sustentam ideias distintas sobre inclusão produtiva. Apesar da mudança no “referencial” das políticas governamentais com vistas a incorporar a noção de inclusão produtiva, este não coincide, na maioria das vezes, com as ideias e práticas dos mediadores envolvidos nos processos de intervenção sociotécnica (ou de tradução) junto aos diferentes grupos de agricultores familiares. Isto nos leva a afirmar a existência de inúmeras desconexões entre o referencial das políticas públicas e as ideias e práticas dos mediadores.
A partir da problemática social e das abordagens teóricas acima destacadas, esta tese define a seguinte questão de pesquisa: em que medida os “referenciais” que orientam as políticas de inclusão produtiva convergem com as ideias e as práticas dos mediadores sociais implicados nos processos de “tradução” das políticas públicas para os diferentes grupos de agricultores familiares?
A pesquisa partiu da premissa de que aquilo que as políticas incentivam não corresponde necessariamente às expectativas e práticas dos mediadores. Com efeito, o fato das políticas serem orientadas por diferentes referenciais confere aos mediadores o papel de traduzi-las e articulá-las para torná-las coerentes para os diferentes grupos de agricultores familiares. Parte-se do pressuposto que, neste processo de tradução, existem inúmeras reinterpretações e “traições”, de modo que mediadores oriundos de diferentes mundos sociais tentam ajustar o conteúdo das políticas às suas distintas concepções de inclusão produtiva.
Estrutura da tese
A tese está dividida em cinco capítulos, incluindo a introdução que aborda os principais pontos desta pesquisa. O segundo capítulo, “A inclusão produtiva na agenda pública”, dividido em seis seções, retrata as principais discussões que cercam a temática da inclusão produtiva no meio rural brasileiro e tocantinense. Assim, busca analisar a imbricação entre os conceitos de exclusão e inclusão, uma vez que o termo inclusão já traz na sua raiz etimológica a ideia de exclusão. Discute-se a trajetória histórica das principais ações políticas em torno da temática inclusão produtiva. No âmbito do Tocantins, exploram-se os elementos que caracterizam a realidade socioeconômica e cultural de seu meio rural e suas transformações após a constituição do estado em 1988 e, ainda, reflete-se sobre as questões que perpassam a inclusão produtiva de agricultores familiares diante dos problemas da ação do Estado. Retrata-se a imagem que os mediadores têm acerca dos públicos que consideram prioritários para acessar as políticas públicas e, por outro lado, aqueles que mais acessaram as mesmas, além de ser ilustrados os principais exemplos de inclusão produtiva e de práticas inovadoras dos empreendimentos coletivos dos agricultores familiares. Por fim, citam-se as principais organizações que atuam na rede sociotécnica da agricultura familiar e apresenta-se os espaços institucionalizados onde são mais recorrentes no debate sobre políticas públicas de desenvolvimento rural.
Posteriormente, o capítulo 3, “Os referenciais de políticas públicas de inclusão produtiva da agricultura familiar”, analisa as políticas públicas (federais e estaduais) que são referenciadas como de inclusão produtiva sob a percepção dos mediadores sociais, ou seja, discorre-se sobre qual é o referencial de inclusão produtiva que predomina nestas políticas e sua ligação com o que realmente está em voga nas legislações, além de ser apresentadas as narrativas dominantes. Também foram analisadas as políticas públicas que foram silenciadas, que tem fortemente a ideia de inclusão produtiva, mas que não foram incorporadas às narrativas dos mediadores sociais entrevistados nesta pesquisa.
No quarto capítulo, “A inclusão produtiva nas ideias dos mediadores”, está estruturado em cinco seções. De início busca assimilar a ideia do que os mediadores entrevistados entendem por inclusão produtiva de agricultores familiares, de acordo com os diferentes mundos sociais a que pertencem, e como essa noção se traduz em suas práticas intervencionistas. Em seguida traz elementos que ilustram o esforço do Estado (e as alterações efetuadas) para promover ações de inclusão produtiva e, assim, torná-las referência no campo político. Por sua vez é retratado o que os mediadores sugerem alterar para que se possa efetivar esse processo, dado o arrefecimento no campo das políticas públicas de desenvolvimento rural. É apresentado indícios da emergência de uma quarta geração de políticas públicas para a agricultura familiar brasileira pautada por um novo referencial setorial que tem como destaque os “novos” mercados e a extensão rural. Por último é problematizado as questões em torno da crise institucional no país e da ocorrência de mudança nos referenciais de ação pública, em especial o da inclusão produtiva que deixa de ser prioritária na agenda pública, ao ser substituído pelos temas da fome e da pobreza rural.
Finalmente, no quinto capítulo, são apresentadas as reflexões e considerações obtidas com essa tese e uma proposta de agenda para próximos estudos.
Conclusão
A principal conclusão desta tese é a existência de mais desconexões do que conexões entre o referencial das políticas públicas da agricultura familiar e as ideias e práticas dos mediadores sociais.
Postula-se, portanto, que os “mundos sociais” analisados sustentam ideias distintas sobre inclusão produtiva. Apesar da mudança no “referencial” das políticas governamentais com vistas a incorporar a noção de inclusão produtiva, este não coincide, na maioria das vezes, com as ideias e práticas dos mediadores envolvidos nos processos de intervenção sociotécnica (ou de tradução) junto aos diferentes grupos de agricultores familiares. Isto nos leva a afirmar a existência de inúmeras desconexões entre o referencial das políticas públicas e as ideias e práticas dos mediadores.
Referências
CALLON, M. (1986). Eléments pour une sociologie de la traduction: la domestication des coquilles Saint-Jacques et des marins-pêcheurs dans la baie de Saint-Brieuc. L’Anné Sociologique, Paris, 36:169-208.
CALLON, M. (1981). Pour une sociologie des controverses technologiques. Fundamenta Scientiae, Strasbourg, 2:381-399.
JOBERT, B; MULLER, P. (1987). L’état en action. Paris: PUF.
LATOUR, B. (2000). Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: UNESP.
RADAELLI, C. M. (2000). Logiques de pouvoirs et récits dans les politiques publiques de l’Union Européene. Revue française de science politique, Paris, 50(2): 255-275.
ROE, E. M. (1994). Narrative Policy Analysis: Theory and Practice. Durham/London: Duke University Press.
SCHMIDT, V. A; RADAELLI, C. M. (2004). Policy change and discourse in Europe: conceptual and methodological issues. West european politics, London, 27(2):183-210.